O passado colonial e as marcas da escravidão na ficção e na realidade brasileira misturam-se e não se apagaram. Este é um dos temas fortes do filme “Fogaréu” (2022), que aporta um olhar visceral sobre a questão latifundiária e a história do Brasil.

A longa-metragem de estreia de Flávia Neves (1982-) foi rodada na sua terra natal, em Goiânia, Estado de Goiás. Uma ficção de 100min que acede e reacende a chama da colonização portuguesa no Brasil, os efeitos causados por ela e os rastos que ainda permanecem na vida do povo brasileiro.

Outro tema abordado no filme é a vida de pessoas conhecidas como os “bobos” de Goiás, pessoas nascidas com algum grau de deficiência cognitiva ou física, mantidos como escravos de famílias ricas, principalmente, latifundiários. Expondo uma relação servil entre ricos e pobres e os mais variados abusos, este é um assunto histórico que o Brasil herdou da exploração colonial, uma questão ainda não resolvida com marcas encobertas, das quais não se pode escapar.
As oligarquias, o coronelismo, as capitanias hereditárias mudaram superficialmente de embalagem, mas continuamos a ter um pensamento e uma cultura daqueles tempos”, relata a realizadora.

A protagonista de “Fogaréu”, Fernanda (interpretada de forma espetacular pela atriz Bárbara Colen) é uma mulher negra, jovem e rebelde que retorna à sua cidade natal para escavar a sua identidade e origem. Para isto, ela decide visitar à casa do tio rico, após a morte da mãe adotiva, com o desejo de saber quem é a sua mãe biológica. Nesta jornada, explodem falsas certezas ao confrontar a família – uma família branca, conservadora e escravagista, da elite do agronegócio. E assim, Fernanda vai desvelando uma dolorosa verdade sobre as suas raízes.

A realizadora, ainda que rapidamente, aborda no seu filme outro tema importante: o poder dos proprietários de latifúndios, frente a uma tribo indígena que tem a sua terra e água roubados pelo tio de Fernanda, o Sr. Antônio. Infelizmente, isto é algo muito comum no Brasil do presente, herdado desde o período colonial e que persiste ao longo da história. Aliás, neste marcante período da história do Brasil as tribos indígenas foram violentadas e dizimadas, além de milhares de pessoas africanas escravizadas.

É aterrorizante saber que a violência está na estrutura da sociedade e na formação do povo brasileiro desde os anos 1500, e se perpetuou nos governos ditatoriais e na tirania de Bolsonaro.

No filme, Antônio é um proprietário de capitanias hereditárias, de uma terra cheia de boiada, e um político local que dissimula ser bondoso ao adotar as pessoas órfãs com deficiência para fazê-las de escravos. Nesta falsa bondade, Fernanda também investiga com a ajuda dos próprios explorados, para a ira do tio, o irmão da sua mãe adotiva, o mistério que envolve a cidade: a enorme quantidade de pessoas deficientes cognitivas, entre os quais as empregadas da sua família: Mocinha (Nena Inoue) e Joana (Vilminha Chaves). O tio de Fernanda insiste que está a fazer um favor a estas mulheres que trabalham sob condições violentas e como escravas, tratadas como se fossem objetos da sua propriedade, algo que Fernanda contesta.

Fernanda é uma mulher forte e destemida, apesar de toda violência sofrida dentro do meio familiar. Os seus pais biológicos são desconhecidos e viveram em Goiás. Ela define como missão central saber de onde veio, quem era a sua mãe biológica, e por que escapou do destino de ser uma doméstica de famílias abastadas e exploradoras.

Cecília, a mãe adotiva da Fernanda, foi-se embora de Goiânia porque não podia se assumir e nem ser aceite pela família e pela cidade, pelo simples facto de ser lésbica.
Assim como Cecília, Flávia confessa ter saído de Goiás para fugir de uma realidade onde é difícil para as mulheres se colocarem. Ela considera-se uma pessoa que questiona as coisas, como a personagem Fernanda, uma mulher que se opõe ao modo de vida da cidade de Goiânia.

Numa entrevista, quando questionada se a história do filme era real ou inventada, Flávia respondeu:

“O filme é inspirado em uma história real. (…) descobri que durante 100 anos, se estabeleceu na histórica Cidade de Goiás, antiga capital do Estado, um tipo de relação social com pessoas neurodiversas denominadas de “bobas” que, embora em processo de desaparecimento, ainda moram na comunidade até hoje. Essas pessoas, oriundas de regiões vizinhas ou das próprias famílias do lugar, eram adotadas e criadas para prestar serviços domésticos. Hoje em dia encontramos ainda reminiscências desse passado. Essa história me perturbou durante anos até decidir fazer um filme.”

A realizadora sentia a necessidade de falar sobre este lugar onde nasceu e viveu até à sua adolescência, antes de ir estudar no Rio de Janeiro. Ela procurou descobrir o que aconteceu com a mãe, que, assim como a personagem Fernanda, é uma filha adotiva. Nunca lhe falaram desta questão importante do seu passado familiar.

As questões coletivas e pessoais levantadas no filme “Fogaréu” estão ligadas de algum modo com a história de muitos brasileiros que ainda vivem de modo servil, explorados ou escravizados. Reacende a chama de um passado tortuoso, que está na cara de todos os brasileiros, mas que muitos nem sequer têm consciência disto. Algo que causa revolta e dor na protagonista, sentimentos que acabam por afetar o espectador que conhece bem a história e o tempo colonial no Brasil. Marcas indeléveis que seguem demasiado encarnadas na vida de pessoas simples do interior do país, principalmente, daquelas que trabalham em quintas de grandes fazendeiros ou como domésticas em casas de famílias exploradoras do meio urbano. Realidade que não se pode esquecer; memórias e feridas históricas para se questionar e reelaborar.

Apesar de ser a sua primeira direcção de uma longa-metragem, Flávia consegue equilibrar bem os pesos e as medidas do filme, cujo guião ela divide com Melanie Dimantas (dos filmes “Carlota Joaquina”, “Nome Próprio” e “Olhos Azuis”) .

Além de Bárbara Colen (minha conterrânea), achei excelente a atuação de Nena Inoue, que fez o papel de Mocinha. Aliás, a realizadora numa de suas falas sobre o filme, declara que não deu o roteiro aos atores de imediato: “A ideia era trabalhar primeiro as emoções, usei a técnica de Sanford Meisner, onde o texto entra depois. Cada ator vive verdadeiramente as circunstâncias imaginárias, cria uma situação na cabeça dele, com pessoas reais, e vive aquela cena, criando junto. Nesse momento, o personagem e o ator se encontram. Uma técnica anti-atuação, de facto vive as situações. Depois, o texto entra de maneira orgânica”; conclui.

Ela esclarece também que: “Inicialmente, o roteiro não tinha esse caráter pessoal. Mas ao longo do desenvolvimento, fui entendendo que minha perturbação tinha a ver com uma memória familiar recalcada. Pois, a questão da “adoção” de pessoas em condições de vulnerabilidade para submetê-las, é uma prática, infelizmente, comum no interior do Brasil até hoje. Minha mãe foi uma dessas pessoas “adotadas” para ser uma criada. Quando minha avó morreu de parto, minha mãe tinha uns nove anos, meu avô se deprimiu e não conseguiu criar os oito filhos, a maioria mulheres. A minha mãe ficou passando de casa em casa fazendo pequenos serviços domésticos, até chegar, aos 12 anos, na casa da família do prefeito, que também é um latifundiário da região. Nessa casa, ela trabalhava pela comida e pelo teto, e era chamada de filha e irmã. Cuidava ainda da criança mais nova da família, que hoje é meu padrinho. Levei um tempo para querer encarar o processo dolorido de deixar emergir toda essa dor e me colocar de maneira tão pessoal e vulnerável no filme. Mas entendi que fazer o filme só tinha sentido se fosse a partir dessa perspectiva”.

O projeto do filme iniciou-se em 2014, passou por vários laboratórios de desenvolvimento de roteiro, teve consultoria de Lucrécia Martel e apoios internacionais. Com a exceção dos diálogos iniciais do filme, um pouco clichés, não tenho outra coisa a objetar.

“Fogaréu” evidencia a urgência do Brasil se libertar de estruturas coloniais, exploradoras e servis, de destruir esta chama e construir um futuro libertário, distante deste passado que sempre fez mal ao povo brasileiro, aos povos marginalizados: os negros, os indígenas, as pessoas com deficiências, de mulheres e pessoas pobres tratadas como objetos de exploração da elite do campo e da cidade.

Um filme que carrega um olhar feminino, a realização e o roteiro, a produção de Vânia Catani (Bananeira Filmes) e a fotografia de Luciana Baseggio.
Não por acaso, Flávia defende que o cinema feito por mulheres, é o que há de melhor hoje no Brasil; ponto de vista com o qual eu concordo.
Ela conclui e alerta: “Nós mulheres, temos que nos preparar muito mais para disputar um lugar num mercado hostil, altamente complexo, que não foi pensado para nós. Temos que provar a todo instante nosso talento, temos que ter projetos melhores que a maioria, para se destacar. Não nos é permitido errar e nem fazer o esperado, temos que surpreender e superar as expectativas sempre. É muito mais desgastante e difícil” . Com certeza!

“Fogaréu” recebeu prémios no Panorama Audience Award, uma das secções mais prestigiadas do Festival de Cinema de Berlim 2022, na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo 2022; no Edinburgh International Film Festival 2022 e no Vancouver International Film Festival 2022.

Assisti ao filme em Lisboa, no dia 30 de junho de 2023 na abertura do FESTin – Festival de Cinema Itinerante da Língua Portuguesa. No final da sessão, senti imensa falta de um debate, nomeadamente sobre a colonização portuguesa, um dos temas do filme que afeta diretamente o Brasil e o ex-colonizador. Questionei uma das criadoras do FESTin sobre o porquê da Flávia Neves ou Bárbara Colen (a protagonista do filme) não estarem presentes para falar sobre o filme , ela disse-me que o festival não tinha dinheiro. Inacreditável!

A estreia do filme em Portugal acontece num dia histórico para o Brasil, dia em que Bolsonaro foi julgado pelo Superior Tribunal Eleitoral, tornando-o inelegível por oito anos, facto que sequer foi mencionado na abertura do FESTin.

Apesar de tudo isto, tendo a oportunidade de assistir ao filme, não percam. RECOMENDO!

P. S. Flávia Neves realizou várias curtas-metragens, sendo a primeira aos 16 anos, “Liberdade” (1998), selecionada para o FICA-Festival Internacional de Cinema Ambiental em 1999. Ela estudou Cinema e Literatura na Universidade Federal Fluminense (UFF) e Direção de atores e Roteiro na Escola Internacional de Cinema e TV de Cuba (EICTV). Além de cursos complementares: Direção de fotografia com Alziro Barbosa (Inspiratorium) e Som com Daniel Deshays (FEMIS). Tem trabalhado como realizadora, roteirista, atriz, produtora e assistente de direção em filmes de ficção e documentários, curtas e longas-metragens e séries para a TV.

Pontuação Geral
Lídia Ars Mello
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