Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim
“.

Neste poema, Carlos Drummond de Andrade retrata o sentimento de ausência, um vazio que internamente nos acompanha e incomoda. E isto pode ocorrer, por exemplo, pela falta de alguém importante em algum momento da nossa vida. Um sentimento assimilado para aqueles que o carregam.

Charlotte Wells (1987-), a jovem argumentista e cineasta escocesa, radicada em Nova Iorque, traz este assunto no filme Aftersun(2022). Longa-metragem ficcional com a qual ela recebeu várias nomeações e prémios, incluindo o Gotham, British Independent Film Awards e o Prémio do Sindicato dos Realizadores dos EUA em 2023.

Wells formou-se em cinema na Universidade de Nova Iorque, período em que realizou várias curtas-metragens, sendo a primeira “Tuesday” (2015), cuja sinopse e tema revelam relação com a sua primeira longa-metragem. Todas as terças-feiras, Allie, de 16 anos, passa com o pai e insiste que naquela semana não será uma exceção. Ao longo do dia, ela tem encontros embaraçosos com a família e amigos, antes de finalmente chegar ao apartamento do pai, lugar onde a rotina é quebrada pelo silêncio de uma casa vazia.

Aftersun regista o relacionamento entre um jovem pai, Calum (muito bem interpretado pelo ator estreante no cinema, o irlandês Paul Mescal, 1996-), e Sophie, a sua filha de 11 anos (magistralmente interpretada pela escocesa Frankie Corio, 2010-), escolhida entre 800 candidatas, durante a busca da diretora de elenco por atrizes talentosas.

No filme, pai e filha agem com muita naturalidade, como se se conhecessem há anos, como se fossem de facto parentes. Foram muito bem dirigidos. Pouco se sabe sobre a mãe de Sophie, já que a realizadora praticamente a ocultou.

O ponto de partida da história é uma viagem de férias de verão, feita de autocarro, que pai e filha compartilham em uma região litoral (um tanto decadente) da Turquia no final dos anos 1990.
O final da década de 1990 foi vivido pelo pai de Wells e não por ela, que nasceu em 1987.

Na relação entre as personagens do filme, a distância e a AUSÊNCIA do pai deixaram marcas profundas na criança. Um pai que parece ter sido mais ausente do que presente na vida da filha, e não sabemos o porquê.

A perfomance de Charlotte Wells, ESTREANTE em longas-metragens, é muito singular e excelente! Conhecer bem o universo que se quer retratar e ter tido uma experiência semelhante com o que se quer contar no cinema; além de conhecimento e boas afinidades estético-formais, capacidade técnica e criativa, certamente ajudaram a argumentista-realizadora a construir a história de Aftersun .

Numa entrevista sobre o filme, ela revelou ter se inspirado no cinema de Chantal Akerman, especialmente na curta-metragem “La chambre” (1972) para fazer o final de Aftersun , somado a outras referências estéticas e às suas próprias memórias.

Os “lençóis do passado” atormentam-nos, as imagens em profundidade expressam e atualizam camadas do passado, como Henri Bergson disse em “Matéria e Memória“, e é no passado que penetramos quando procuramos uma “memória pura”, que é atualizada numa imagem-lembrança. Passado e presente coexistem. Numa visão bergsoniana e deleuziana, o tempo é dividido entre um passado que perdura e um presente em movimento. Uma coexistência entre uma imagem real, do presente, com uma imagem virtual, do passado. Uma imagem “cristal de tempo”. O tema e a forma como a história do filme de Charlotte Wells é contada perpassam essas ideias.

Sophie, adulta, conserva a memória das férias com o pai, e a acessa no tempo presente através de um vídeo gravado pelo pai, com uma câmera Mini-DV.
Ela evoca o passado da sua infância, buscando refletir a instigante e MEMORÁVEL relação com o pai. Um pai que regista os parcos momentos vividos com a filha, tempo que pode ser revisto na atualização do passado no presente.

Tempo e memória no cinema são temas que sempre me perseguiram- enquanto investigadora na universidade.

Saio da digressão filosófica.

Tendo em vista meu hábito regular de escrever críticas sobre filmes realizados por mulheres (muitos deles com temas relacionados às próprias realizadoras, à figura feminina e às relações familiares), e antes mesmo de escolher os filmes sobre os quais escrever, questiono-me o quanto eles estão ligados a cada realizadora. Sejam documentais ou ficcionais.
Uma questão que também se aplicaria se eu escrevesse sobre filmes realizados por homens.

As mulheres são mais propensas a expressar os afetos pessoais e familiares, seja no âmbito da realidade ou da ficção.
O que acontece com os cineastas (mulheres e homens) na sua esfera pessoal e as suas subjetividades estão, portanto, nos filmes, de alguma forma, mesmo que eles os neguem ou os escondam daqueles que têm um olhar superficial e uma atenção desatenta.

Aftersun tocou-me em particular, porque sou filha de um pai ausente. O meu pai faleceu muito cedo, infelizmente nem cheguei a conhecê-lo, e isso me deixou marcas indeléveis.
Sempre quis um pai presente e idealizei esse pai que não tive.

Voltando ao filme, pai e filha durante a viagem de férias de verão, filmam-se um ao outro com uma câmera de vídeo portátil. Outra câmera, a do diretor de fotografia do filme (Gregory Oke), observa-os e acompanha-os, registando o tempo que passam juntos.

Oke filmou com uma ARRI Arricam Lite e a lente Cooke S4 de 35 mm, uma câmara compacta e leve que permitiu que ele e a equipa fossem ágeis no set de filmagem, se adaptassem aos ambientes e cenas com mais facilidade. Uma câmara e lente que possibilitam um visual digital antigo e granulado, que lembra a estética dos vídeos caseiros da década de 1990.

Uma fotografia carregada de ranhuras e texturas, um sentimento de nostalgia, de filmes de família e do passado, e que não destoa muito da imagem de uma câmera Mini-DV, a primeira câmara que Charlotte teve na adolescência. Tudo isso causa um impacto na narrativa fílmica.
A parte visual e a temática do filme estimulam-nos a nos conectarmos com imagens nostálgicas da nossa infância.

Para além de tudo isto, pai e filha se filmam o tempo todo durante a viagem. Para quem?
Suponho que para guardar o presente e no futuro aceder ao passado; para mostrar a mãe de Sophie (que nunca vemos no filme e quase nada sabemos dela); para conservar o presente no passado até que as imagens durem, pois a memória humana é frágil e nos trai.

O filme traz o ponto de vista da Sophie adulta (interpretada pela atriz e artista norte-americana Celia Rowlson-Hall), que aparece pouco e vagamente no écran, enquanto adulta.

Quem de facto atua, quem está no écran todo o tempo, é ela enquanto criança e  o pai.
Um pai amoroso, que entretanto esteve muito ausente na sua vida.

O pai, Calum, é mais discreto do que Sophie, e não parece se apegar a ninguém, nem mesmo à filha. A menina visivelmente sente a falta do pai e de sua presença constante; de um pai que brinca, ama e cuida quando está junto dela, mas que não está a todo tempo na vida de Sophie.

É possível perceber sentimentos de cumplicidade, afeto, proteção e amor entre eles, e igualmente sentimentos de deslocamento, abandono e solidão que podem ser apreendidos nas cenas de respiro do filme, nos momentos de silêncio e nas pausas da ação de Calum e Sophie, quando estão sozinhos consigo mesmos. Há coisas não ditas e dolorosas em jogo.

Aftersun é cheio de suavidade, mas também de afetos incómodos e ocultos.
Há coisas que acontecem na vida de uma pessoa que nem sequer na ficção são contadas.

Desde o primeiro momento em que assisti ao filme, percebi que havia algo que conectava Sophie e a realizadora Wells, na infância.

Numa entrevista concedida em outubro de 2022 em Nova Iorque, perto do Brooklin, onde Charlotte Wells reside, ela declarou que o pai morreu quando ela tinha 16 anos, que ele morava em Londres a maior parte do tempo quando ela era criança, mas que passava muito tempo com ele. Relatou também : “Ele era muito amoroso, ambicioso e super criativo e tinha a pretensão de que eu me tornasse cineasta, algo que me ocorreu recentemente. Detesto pensar que realizei o que meu pai queria. O meu objetivo era fazer o oposto.

Como se pode constatar, a vida e a ficção da realizadora estão intimamente ligadas.
Além disso, o pai de Wells lhe deu uma câmera Mini-DV de presente quando ela era adolescente, como mencionei antes e, no filme, vemos a criança e o pai se filmando com uma câmera portátil semelhante a uma Mini-DV.

Wells também afirma que seu pai a alimentou com muito conteúdo artístico desde a infância. E isso pode ser observado no filme, até mesmo nas músicas que o pai ouvia e apreciava, algumas das quais fazem parte da banda-sonora do filme de Charlotte Wells.

No processo de escrever o argumento da sua longa-metragem, a realizadora disse ter assistido a fitas Mini-DV que o pai filmou em família, e comentou que usou alguns dos diálogos delas em Aftersun . A memória pessoal e a ficção se entrelaçam.

Ela descreve Aftersun como “emocionalmente autobiográfico”.
Portanto, muitos sentimentos das personagens do filme têm conexões com o seu universo familiar e pessoal.

A cineasta cria uma narrativa libertária entre pai e filha, entre Calum e Sophie. Ele respeita-a no seu modo de ser, mesmo sendo ela uma criança. Vou dar-vos um exemplo: Sophie beija um miúdo no hotel e conta ao pai, que não vê nada de errado nisso. Sophie tem 11 anos e o miúdo parece ter a mesma idade. Conversam sobre isto naturalmente, e no final o pai pede-lhe que faça o que quiser com a sua vida, mas que lhe conte enquanto ela vai crescendo.

Por volta de 1h26min do filme, o pai chora no quarto do hotel, como se sentisse remorsos por algo que fez no passado ou pela sua fragilidade em ser pai, pelas lutas internas. Nesse momento, a câmara também mostra um cartão postal para Sophie, que não está na cena.

Quase no final do filme, ao som da música “Under Pressure“, dos Queen & David Bowie, que lhes dá a chance de compartilhar um momento divertido juntos, o pai entra na pista de dança (do hotel onde estão hospedados) com a filha, despedindo-se da viagem e de si mesmos, já que estarão ausentes, um do outro, outra vez.

A cena do aeroporto é, na verdade, a despedida: a filha acena com a mão em sinal de adeus; verbaliza que ama o pai e ele filma e regista esse momento afetuoso.

Paralelamente, Sophie adulta, em sua casa, está a terminar de rever o filme da família, assistindo ao vídeo das férias com o pai, no tempo da sua infância.

Como no poema de Drummond, “a ausência, essa ausência assimilada”, ninguém pode rouba-la de Sophie e Charlotte Wells.

O filme pode ser encontrado online em plataformas de streaming, On Demand.

Super Recomendo a sua visualização e deixo aqui o trailer:

Pontuação Geral
Lídia Ars Mello
Jorge Pereira
aftersun-a-memoravel-relacao-entre-um-jovem-pai-e-a-filha"Aftersun" é cheio de suavidade, mas também de afetos incómodos e ocultos.