Ao afirmar que “a esperança é o mais sórdido dos sentimentos“, Jorge Luis Borges (1899-1986), o autor de “O Aleph“, livrou a sua pátria, a Argentina, da crença democrática da salvação à menor lufada de vento, dando aos conterrâneos o direito de relativizar os valores que cimentam o mundano, como, por exemplo, o trabalho. Morán, a personagem mais genial da quase comédia “Los Delincuentes“, teve plena identificação com o pensamento borgiano.

No filme mais ousado (e mais engraçado) da mostra Un Certain Regard de Cannes deste ano, o bancário vivido por Daniel Elias (em estado de exceléncia) prefere passar três anos na cadeia, após roubar os cofres da instituição onde trabalha, do que gastar as próximas duas décadas da sua vida lá, fechando balanços e somando débitos ou créditos. Na lógica que o cinema argentino persegue – de formas bem distintas – desde “Tire Dié” (1958), de Fernando Birri, a ação marginal de Morán o heroiciza, ao tirá-lo da condição de “gado”, ao livrá-lo do servilhismo, ao agrilhoá-lo à liberdade. A sua transgressão é não aceitar-se medíocre. Mas o filme arrebatador de Rodrigo Moreno (que nos deu o belo “El Custodio“, e 2006) não se limita a questões existenciais à moda beatnik do seu protagonista. Até porque, numa narrativa de três horas, construída como um “Paris, Texas” portenho, existirá um espelho para Morán.

Um amigo dele, de vida medíocre, é escolhido para ficar com a fortuna que o colega roubou. Ele deve proteger o dinheiro até Morán sair da cadeia. O problema é que, o Destino, perverso como só ele consegue ser, prega uma partida no libertário ladrão e faz dele o alvo de um golpe duplo. De um lado, o amor vai cruzar a sua vida, no que ele se embrenha numa região do interior. Do outro, a mixórdia moral do seu amigo vai entrar em metástase e o fracasso que lhe era inerente passa também a contaminar o mundo de Morán. É, portanto, um filme sobre escolhas e as suas consequências. Um filme sobre a percepção de que toda a delinquência tem um custo e numa expiação. Mas a sabedoria de Moreno, que torna a sua longa-metragem tão saborosa, é a habilidade de isentar o seu universo de culpa, sobretudo da culpa messiânica, mítica. Morán não teme o fado que a vida puser para tocar no seu futuro. Viver é maior do que ter medo.

Nessa ótica, a estrutura de realização de “Los Delincuentes” vai pelo mesmo caminho, liberta de quaisquer amarras. Faz rir, faz suspirar e faz uma série de aforismos sociológicos no seu caminho. O que lhe importa de modo mais prioritário é dissecar Morán. Mas com a ajuda de uma engenharia sonora primorosa, o filme faz dessa dissecação um espetáculo cinemático, dos mais ousados.

Pontuação Geral
Rodrigo Fonesa
los-delincuentes-um-paris-texas-argentino Morán, a personagem mais genial da quase comédia "Los Delincuentes", tem plena identificação com o pensamento de Jorge Luis Borges