A temática da família e um olhar para suas próprias raízes e memórias tem sido frequente ultimamente em filmes realizados por mulheres.

O cinema tem funcionado como uma janela para expressar o mundo familial das mulheres?
Talvez. Ou pelo menos tem sido um importante espaço para refletir tal temática. E não é a única arte que possibilita tal experiência.

Em “Alcarràs” (2022), segunda longa-metragem da realizadora espanhola/catalã Carla Simón (1986-), ela persiste neste tema, explora as vivências e memórias da sua família. Cria uma ficção que aborda também a relação da família com a terra, uma família que vive do cultivo de alimentos.

E isto se confirma na entrevista que Carla concedeu à C7NEMA:

Quando o meu avô morreu, dei-me conta que o seu trabalho e legado nas terras podia acabar (terras onde ela passou sua infância. Os meus tios herdaram as terras (em Alcarrás – Catalunha/Espanha). Um queria seguir a tradição familiar, outro não. Dei-me assim conta que este era um mundo que estava a acabar, que podia desaparecer. Cultivar a terra em família era algo difícil de manter, pois não é algo tão sustentável para uma família como era antigamente“.

Alcarràs” é, portanto, um drama que conta a vida de uma família que se sustenta com a colheita de pêssegos e é forçada a abandonar a terra que cultiva há várias décadas, diante de um frágil acordo verbal com o antigo proprietário, que se rompe após a sua morte, quando os herdeiros legais já não reconhecem o acordo e querem mudar a situação, retomar e vender a terra. O dinheiro vale mais que as palavras! Nos tempos antigos, era muito comum este tipo de arranjo verbal entre os abastados donos das terras e os trabalhadores-agregados.

Eu passei parte da minha infância e depois férias escolares no campo e lembro-me de ouvir histórias dos meus avós, histórias de agregados – de famílias que recebiam parte da terra de grandes proprietários para cuidar na meia. Ou seja, “ganhavam” temporariamente um pedaço de terra para cultivar, dividiam parte da produção com os “verdadeiros” donos da terra, em troca de ter onde viver, investiam o seu tempo e força laboral, mas nunca obtinham o documento legal da terra. Assim viveram gerações e gerações em terras alheias e com direitos de uso efémero, não podendo reclamar e nem se revoltar ainda que sofressem opressão. E não tinham como recorrer, caso fossem expulsos pelos herdeiros legais. Como ocorre em “Alcarràs“.

Mas, como dizia o poeta oral e músico popular do nordeste do Brasil, Patativa do Assaré:

“Quando um agregado solta o seu grito de revolta, tem razão de reclamar.
Não há maior padecer do que um camponês viver sem terra para trabalhar”.

O próprio Assaré pertencia a uma família de camponeses, conhecia bem esta realidade.

Voltando ao interior de “Alcarràs” , a realizadora constrói uma narrativa carregada de memórias que valorizam o cultivo da terra, a vida agreste, a ancestralidade e as várias camadas do ambiente familial. Delineia a relação privado-coletivo, trabalho familiar versus mundo capitalista, que imprime uma mudança bruta na forma de produção e valor dos alimentos cultivados pelas mãos. Mas ela desliza um pouco na cena em que os camponeses saem as ruas da aldeia para protestarem sobre o baixo preço/valor que recebem pelos alimentos que produzem e vendem. Esta cena pareceu-me um pouco panfletária, pouco real ou convincente, e não tão bem encenada-realizada; esta é a minha impressão.

Contudo destaco o cuidado que Carla Simón teve ao incluir trabalhadores migrantes que vivem em Espanha, na colheita dos pêssegos, sendo bem recebidos pela família de pequenos produtores que se dedicam a terra, que resistem e insistem noite e dia em “viver da terra” , como dizem no filme. Para eles, perderem a terra de onde tiram o sustento é como perder a vida.
Uma família amorosa, que fabrica momentos de felicidade quando estão na lida agrária ou quando estão a mesa para partilhar os alimentos que produzem.

Com “Alcarràs“, Carla concorreu e venceu a competição principal do renomado Festival de Cinema de Berlim. Ficção rodada de modo bem realista com 12 atores não profissionais, numa atuação espontânea, natural. Filme cuja protagonista é, em si, uma família; para além da terra.

As imagens do filme foram registadas numa pequena aldeia catalã, valorizando as locações e a luz natural dos tempos da vida campestre. Optando por filmar assim, Carla conseguiu realizar o filme com poucos recursos, mesmo não sendo documentário, género que, em geral, tem custos de produção mais baixos.

A câmara regista em planos longos (com destaque aos diferentes sons da natureza), as emoções dos personagens, acompanha-os de modo afetivo e estilisticamente poético em seu quotidiano da zona rural onde trabalham e habitam.

A direção de arte esteve muito atenta aos objetos de memórias familiares, que representam e fazem parte das diferentes gerações que abrigam a história contada no filme.

A direção de fotografia acolhe, enquadra de maneira calma e pictural a paisagem belíssima do interior da Catalunha, contrastando com o trabalho intenso, incessante e rústico da vida do campo. Um labor duro que exige força física, resistência e coragem, as pessoas levantam-se e vão dormir muito cedo, além de trabalharem debaixo de sol, calor, frio ou chuva. Os desafios não são apenas meteorológicos, pois há plantações perdidas, etc. Sem contar que, em geral, os campesinos vivem menos que as pessoas urbanas, devido ao peso do trabalho na vida quotidiana.

Sobre o modo de seleção e direção dos atores que interpretam a família representada no filme, numa entrevista concedida à Variety, declara a realizadora Carla Simón:

Fomos a todas as celebrações populares nas aldeias à procura de candidatos com semelhanças com as nossas personagens. Depois mudei-me para Lleida/Lérida, e trabalhei com eles individualmente ou em pares, trabalhando principalmente em sentimentos ou emoções suscitadas pela história. Uma vez assimilados os sentimentos das personagens, começámos a ensaiar, com uma leitura apenas do guião, dando algum espaço para a improvisação – normalmente não quero que memorizem muito. Tivemos a maravilhosa realizadora de casting – Mireia Juárez, equipa de casting de rua e coach, Clara Manyós“.

Simón chama a atenção no filme ao quão difícil é hoje dedicar-se à agricultura familiar, uma forma de cultivo de alimentos que é mais respeitosa para a terra e gera melhor qualidade de vida aos humanos.

No Brasil temos uma experiência bem sucedida de trabalhadores rurais, o MST- Trabalhadores Sem Terra – organização coletiva composta por famílias que se unem para cuidar e viver da terra, e que reivindicam e conquistam o direito a terra, ao cultivo e vivência no campo por meio da luta engajada, que inclui permanentes obstáculos. Um movimento social, auto-gerido que procura articular e organizar os trabalhadores rurais para atingirem a Reforma Agrária, um Projeto Popular de Agricultura para o Brasil. Sendo a conquista da terra o primeiro passo para a realização da Reforma Agrária.

No filme “Alcarràs” , a luta para se manter e sobreviver na e da terra é de apenas uma família, entretanto eles também se unem a outros trabalhadores da aldeia para reivindicarem seus direitos.

Assisti o filme no Festival Política, que aconteceu no cinema São Jorge em Lisboa, de 21 a 23 de abril 2023. “Alcarràs” pode ser visto em Video on Demand.

P.S. A argumentista e diretora Carla Simón estreou a sua primeira longa-metragem, “Verão 1993” (2017), na secção Geração da 67ª Berlinale, onde foi premiada. Filme no qual ela também discorre sobre a família, mas focado na infância da protagonista Frida, no mundo que ela deve enfrentar após a morte da mãe, enquanto filha adoptiva e no seio de um novo lar.

Pontuação Geral
Lídia ARS Mello
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