Um círculo familial-afetivo fragmentado pode se reconciliar?

Uma mãe (vivida de modo impecável por Alba  Rohrwacher) e uma filha (interpretada magnificamente por Maayanne Conti) estão afetivamente desligadas. 

A filha vive com a avó paterna (Giovanna Ralli) que, presa ao passado, a todo o momento recorda as memórias do filho Marcel. A menina é carente, solitária, está a aprender a tocar saxofone e visita frequentemente a mãe desconectada da maternidade, uma mulher  silenciosa e libertária.  Uma artista de rua que tem o cão marcel como companheiro do espetáculo que apresenta pelas ruas, em busca de dinheiro para viver. Uma mãe que dedica o seu amor mais ao cão do que à filha. Uma artista que performa a vida e para quem a arte está acima de tudo. 

O que vai uni-las e recompor os fragmentos de amor entre elas?
A arte! Parodiando Nietzsche, temos a arte para suportar a realidade.

Do que estou a falar? Estou a falar de  ´´Marcel´´  (2022) um filme intimista e dramático que mistura fabulação e realidade para retratar a relação entre as duas protagonistas, mãe e filha, para falar de afetividade e relacionamentos familiares.  Uma ficção da realizadora italiana e estreante Jasmine Trinca (1981-), que também é atriz.

O filme dura 93 min, é composto por 10 curtos capítulos intitulados: A família, O princípio criativo, O choque, A redução, A espera, A ascensão, Viajante I,  Viajante II, Antes do fim e Depois do fim. Pleno de memórias pessoais da realizadora, de uma fotografia em que ela, quando criança, caminhava pelo bosque com a sua mãe que a segurava pela mão. É dessa imagem que surge o tema do filme: uma tentativa de reescrever a relação entre uma mãe e uma filha que partilham crueldade e cura, como disse Jasmine numa entrevista dada em Itália.

Os títulos dos capítulos do filme estão relacionados com a jornada que atravessam as duas mulheres que atuam de modo minimalista. Cena por cena, capítulo por capítulo, vamos acompanhar a transformação da menina  ao mesmo tempo desolada, arisca e  doce, e da mulher artista penitente, distante da maternidade e dedicada a arte.  Vamos perceber juntamente com elas os sentimentos de ausência, de sofrimento, de pequenos prazeres, de fantasias e afetos múltiplos que ata-as num mesmo destino familiar. O pai, suposto Marcel, o marido deixou-as. Ele morreu e não se sabe o motivo, nem quando isso aconteceu, são subtis no filme as referências a este facto. Isto, claro, além da relação mal resolvida entre elas, que lhes causa dor. 

As duas, pouco a pouco, se aproximam quando partem em viagem rumo a um festival de artes circense. No caminho, a filha improvisa sons no saxofone, enquanto a mãe faz performances circenses pela estrada da vida, tomam a arte como alimento e como modo de estreitarem os afetos rompidos.  A banda sonora vibrante e afetiva enche de energia e alegria os momentos em que elas passam juntas enquanto viajam. 

Jasmine Trinca constrói muito bem a psicologia das personagens, o seu estado interior, o que pode ser apreendido na entrega da atuação intensa e tocante das duas mulheres, mãe e filha.

A realizadora  nos surpreende a todo momento com soluções fílmicas criativas para os problemas familiares que  vivem as personagens de ´´Marcel´´ . Por exemplo, na cena em que a menina conversa com o avô , vamos descobrir que o cão que ela matara para se vingar da falta de atenção da mãe, era do seu pai (de Marcel). Cão que era o companheiro de arte e de vida da sua mãe. Com ele, ela acalentava a ausência do marido. As duas atravessam o luto de modo silencioso, quase oculto; o que as salva é a arte.

A narrativa de ´´Marcel´´ lembrou-me  a atuação de Charles Chaplin e “A estrada(1954), de F. Fellini, um filme que narra o drama de Gelsomina, uma moça pobre e ingénua que era tratada como um objeto pela sua família e acaba sendo vendida para Zampano, um homem rude e artista de rua, que ensina a Gelsomina truques circenses. Juntos eles lançam-se na estrada em busca de algum dinheiro para sobreviverem. Numa entrevista, a realizadora assume a inspiração da personagem Gelsomina e da sua própria mãe para criar a personagem mãe do seu filme´´Marcel´´.

Outra referência é a inspiração da atuação do ator Marcel Marceau (1923-2007) com a sua “arte do silencio”, as suas performances corporais silenciosas, que a a realizadora usa para compor a personagem da mulher-artista do seu filme.

“Marcel“é artístico, pleno de poesia, de memórias e experiências do tempo presente. Filmado com enquadramentos pictóricos com luz contrastada, predominam planos mais abertos em locações naturais que valorizam a paisagem campestre e a luz diurna do interior da Itália. Quase um road movie, as personagens estão sempre a se deslocarem de um lugar para o outro e das suas próprias emoções e sentimentos.

Percebo que têm surgido muitas mulheres a fazerem filmes sobre temáticas familiares e que envolvem questões afetivas a partir das suas próprias famílias.


Em 2022, ´´Marcel´´ foi exibido numa sessão especial da Seleção Oficial de Festival de Cannes. Tive a oportunidade de assisti-lo na Festa do Cinema Italiano 2023, no Cinema S. Jorge dia 30.3. Será exibido outra vez  amanhã, dia 3 de abril, na sala 3 deste cinema às 19h30. A não perder!  

Em ´Marcel´´, Jasmine divide o argumento com  Francesca Manieri. A direção de fotografia é de Daria D´ António. Produzido por Olívia Musini. Cenário de  Ilaria Sadun. Figurino de Marta Passarini. Montagem de Chiara Russo. A diretora assistente é Elena Casnati. Um filme pleno de mulheres talentosas, sobre mulheres, com um olhar bem feminino.

Pontuação Geral
Lídia ARS Mello
Jorge Pereira
marcel-a-relacao-entre-mae-e-filhaJasmine Trinca constrói muito bem a psicologia das personagens, o seu estado interior, o que pode ser apreendido na entrega da atuação intensa e tocante das duas mulheres, mãe e filha.