Francisca (1954-) é o  nome fictício da protagonista do filme No canto rosa” (2022). Documentário da realizadora portuguesa Cláudia Rita.  Logo no início da narrativa ela relata que teve a sua vida destruída pela convivência com o ex-companheiro, a quem ela disse ter dedicado muita esperança. 

No plano da realidade, teve a sua vida cerceada, agressões verbais e terror psicológico cometidos por um homem extremamente controlador que interferia em tudo, e não apenas na relação conjugal.  Como ela demonstra no filme, ele tentava afetá-la até mesmo institucionalmente no que diz respeito ao  seu património.  As agressões a Francisca começaram após a separação de um relacionamento que durou três anos. 

Antes disso, a vítima vivia há 20 anos numa linda zona campestre de Portugal rodeada de natureza, de  liberdade  e não dependia financeiramente do então companheiro.

Numa entrevista-conversa com a filha Cláudia, diante da câmara Francisca narra o que enfrentou durante a perseguição do homem que a amou e odiou. Cláudia, por sua vez, regista e nos conta em forma de filme a história da mãe, história que afetou toda a família.                                                                                                                     

A realizadora contextualiza a vida da mãe antes, durante e depois da violência doméstica e das ameaças sofridas por ela. Além de imagens filmadas, utiliza fotos e imagens em movimento de arquivo familiar e público, mostrando o cuidado que Francisca teve com as duas filhas ao longo do crescimento delas e igualmente com os pais em seus últimos anos de existência. Traça a biografia de Francisca, para além  do âmbito particular/pessoal, contextualiza a situação sócio-política e destaca o papel da mulher na sociedade portuguesa no período que antecede e sucede ao 25 de abril.

Apesar de ser um filme com uma temática traumática, a realizadora consegue suavizar o peso do conteúdo ao criar uma estética poética, atenta à situação que atravessa a personagem principal, procurando reproduzir a sensação de claustrofobia e  outros sentimentos que causam a agressão psicológica. “No canto rosa” expõe um sofrimento íntimo, uma dor quase sempre invisível para quem está de fora.

Um filme intimista e familiar construído por Cláudia, um olhar de uma mulher sobre a outra, um olhar de filha para uma mãe que sofre, um  drama social que muitas mulheres enfrentam.  

Cláudia se surpreende muitas vezes ao longo do filme com a realidade que viveu Francisca, que pouco lhe revelava sobre o que sofria na intimidade conjugal.

Diante da perseguição e ameaça de morte, no início de 2018, Francisca foge para Lisboa e com a ajuda da filha ganha coragem de denunciar o agressor, que também ameaçava Cláudia por defender e ajudar a mãe a livrar-se dele. Uma mulher que teve sua vida devastada e a sua liberdade comprometida por causa deste homem.

Conforme a realizadora, o artigo 192  do código penal impede o relato completo de Francisca, e isto é explicitado no documentário.  Segundo Cláudia, esta foi uma maneira de evitar correr riscos dos pontos de vista civil e criminal. Ao ser obrigada a omitir estas e outras informações da narrativa pessoal da mãe, nomeada como Francisca, torna-se um tipo de censura que, conforme Cláudia, trouxe um posicionamento repressivo para dentro do discurso do filme.

Então, ela reproduz gravações de voz, onde se ouvem as agressões verbais, inclusive ameaças de morte do homem abusador que perseguia Francisca pessoalmente, por telefone/WhatsApp, email, etc.  Ele mesmo produziu as provas do crime que cometeu.

Francisca  teve a sua saúde física e mental profundamente abalada (crise de ansiedade, temor, dor, pânico, etc,). Diante da tortura psicológica,  tendo o direito de ir e vir limitado, ela passou a ter medo de viver, de ser sequestrada ou morta pelo homem que a perturbava por todo lado, quotidianamente, noite e dia, de todos os modos, na sua própria casa e fora dela. No final, ela necessitou tratamento com um psiquiatra.

Como mostra o filme, ela, antes disso, era uma mulher independente e corajosa e vivia em paz numa grande e confortável casa de campo, até que  o homem agressor colocou-a em situação de vulnerabilidade e risco permanente.

Cláudia inicia os registos em vídeo, documentando este terror  que durou cerca de 3 anos, como resposta ao facto de que a sua mãe não estava a perder a vontade de existir, pese embora tudo o que estava a sofrer.

Além de Cláudia, a mãe  teve ajuda e apoio de outra filha, dos vizinhos Carlos e Teresa, da sua advogada e do ex-marido que depôs a favor dela no julgamento do homem violento. Um julgamento que ocorreu no final do ano de 2021 e, como demonstra o filme, parece não ter sido severamente punido.

A Justiça tem progredido, mas ainda está longe de fazer a devida justiça as vítimas que sofrem este tipo de crime e outros crimes de violência contra as mulheres. Mas, como ela disse, tornou-se imperativo para a sua mãe e para si “retomar a voz e a palavra”, retomar a liberdade e as rédeas das suas vidas. Após ser julgado, o homem parou de perseguir Francisca. 

Infelizmente, são muitas as mulheres de todas as idades e classes sociais que sofrem violência doméstica em Portugal e no mundo, uma realidade que precisa ser mudada. A mulher não é propriedade do homem e a sua liberdade não pode ser condicionada à vontade do companheiro/marido.

O documentário “No canto rosa” traz às vistas, portanto, um assunto grave e urgente a ser discutido e repensado na sociedade e nos sistemas jurídicos atuais. Um filme que deve ser mostrado, visto não apenas em  salas de cinema e festivais, mas também em escolas e instituições ligadas aos direitos humanos e das mulheres, dentre outros.

Achei corajoso da parte da realizadora e da sua mãe tornar público algo tão íntimo. Ao mesmo tempo percebo ser  necessário que situações e crimes como este sejam publicitados para desmistificar a ideia de que a violência  não  é algo comum entre casais e no seio familiar. A sociedade tenta maquilhar, naturalizar ou esconder esta realidade, enquanto um grande número de mulheres sofre entre quatro paredes no relacionamento com companheiros afetivos. 

Segundo as autoridades do sistema judicial em Portugal, a violência doméstica é o crime mais cometido neste país, principalmente entre casais e contra mulheres.

De acordo com Cláudia,  ela registou o que estava acontecendo com a mãe,  como quem regista uma prova. Gradualmente, a sua observação sobre o comportamento do agressor e da vítima, tornou-se uma observação sobre a perpetuação destes papéis – pela ineficácia do  sistema onde ambos se inserem, conclui.

Com relação ao título do documentário e à sua simbologia, ela relata que a cor rosa coloca o indivíduo do sexo feminino, subjugado e encurralado nessa ideia “rosa” de ser mulher. Ao colocar, nas cenas iniciais, um círculo rosa cobrindo a cabeça e toda a face da protagonista, Cláudia disse evidenciar que “a omissão dos traços identitários (seja do rosto, seja da voz, seja da própria narrativa), carrega o sentido de ausência de identidade individual e que, numa escala maior, quando aplicado a um grupo, evidência um rosto coletivo apagado”. Ao longo do filme, outras questões femininas igualmente relevantes vão sendo desmistificadas pelo modo crítico e formal que ela constrói.

Saliento que a realizadora faz  a direção de fotografia, filma as imagens criando uma estética intimista, embora faça pouco uso de primeiros planos (planos que em geral são usados para aproximar e mostrar  aspetos  íntimos dos personagens). Igualmente, ela faz uma equilibrada montagem utilizando diferentes imagens filmadas, fixas e de arquivo (privado e público). O arranjo coerente dessas imagens permite “evidenciar o comportamento de Francisca que por um lado, tenta romper com o lugar que lhe é imposto socialmente enquanto mulher; e por outro, ocupa o  lugar de cuidadora e conciliadora.”

Diante dos altos custos para se realizar um filme e da  precariedade de se fazer cinema em Portugal (e em outros países), é cada vez mais comum que exista um acumular de funções, não necessariamente por opção dos realizadores.

Destaco ainda a importância de mais mulheres contarem histórias sobre o universo e com um olhar feminino, digo, do ponto de vista de quem vive as histórias. 

Mais que recomendo o filme “No canto rosa.

O documentário teve a sua antestreia no FESTin 2022, ainda não foi lançado nas salas de cinema. Pode ser visto online (de modo pago) durante o  Manchester Lift-Off Film Festival, que acontece de 13.3 a 10.4.23, e de 10 a 12 de agosto no Berlim –  Film Fest International   

Pontuação Geral
Lídia Ars Mello
no-canto-rosa-sobre-violencia-contra-a-mulherUm filme intimista e familiar construído por Cláudia, um olhar de uma mulher sobre a outra, um olhar de filha para uma mãe que sofre, um drama social que muitas mulheres enfrentam.