Como representar uma corrente artística que, num momento em que a procura de estabelecimento de autoridade entre dois clãs que guerreiam entre si para tomar o lugar de imperador leva a uma ortodoxia violenta, foi apagada de todos os livros de história? Ou como traduzir o impacto social e político de uma nova forma de espetáculo para um contexto percetível para uma sensibilidade atual, sem perder em possíveis anacronismos a fidelidade à época retratada? “Inu-Oh” procura fazê-lo para um movimento de Sarugaku (um precursor do Noh), utilizando, para isso, uma personagem lendária e construindo uma ópera rock à sua volta.

O que começa como um filme de época (com um flashback visual que anuncia a criatividade de tudo o que se avizinha), com um estilo poético épico e uma aproximação às representações artísticas feitas de um conflito prévio que inicia e reproduz o atual (e tantos outros que se seguiram), vai-se tornando, com o surgir da nova forma de Sarugaku, representada de forma moderna, pelo rock e pelas encenações dos concertos, no que só se pode descrever como uma ópera, quer pela música, quer pelo aspeto épico da coisa, com a música a avançar a história dos conflitos, passado e atual, e definindo a posição social de quem a faz.

Se há algo que caracteriza este filme é a invenção visual: as dificuldades físicas dos dois protagonistas, um cego e outro com deformidades, são exploradas de forma criativa, sugerindo formas como a sua vivência interior lhes permite ultrapassá-las, e todos os elementos dos concertos têm uma construção material de época que, apesar das afinidades modernas, permitem a possibilidade fantástica de, mesmo com tecnologia antiga, os vermos sem qualquer anacronismo, ao mesmo tempo que deixam o delírio da imagem desenrolar-se com a música.

É um filme que, como uma boa obra de Arte, permite várias leituras, desde a da semelhança dos conflitos e da procura de poder ao longo dos tempos, até à da libertação pela arte de quem a faz. Também se pode, pegando na história de Avu-Chan, que dá voz ao titular “Inu-Oh”, fazer uma leitura de uma rebelião contra as normas de género impostas de forma arbitrária pela sociedade e as linhas de fuga que a arte permite. Mas, mais do que um exercício intelectual, este é, sem dúvida, um daqueles filmes que merece ser visto num cinema, com uma tela enorme e um bom sistema de som, para nos podermos deixar perder nas imagens e na música.