O que podem as palavras” (2022) é um filme realizado por Luísa Sequeira e Luísa Marinho. Teve a sua estreia no DocLisboa no dia 9 de outubro, com a presença das realizadoras.

Durante o debate, elas relataram que o filme levou 10 anos a ser concluído e que a ideia surgiu da poetisa, feminista, investigadora e professora de Literatura Ana Luísa Amaral (1956-2022), cuja intenção era documentar e difundir o processo de criação do livro singular e histórico: Novas Cartas Portuguesas, publicado pela 1ª vez em 1972. Obra que tem como origem e inspiração as Cartas Portuguesas de Soror Mariana Alcoforado (1640-1723), mulher que foi enclausurada num convento pela família e muito feminista para seu tempo. A poetisa era amiga das autoras e convidou as outras duas Luísas para costurar as conversas das escritoras em forma de imagens, trazer ao ecrã, fazer vir a luz o devir-cinema da literatura.

Neste pensar, o filme tem um caráter coletivo, visto que foi feito por várias mãos, pensamentos e olhos de Três Luísas e Três Marias.

A obra literária, por sua vez, foi escrita coletivamente (e sem autoria definida) por Maria Isabel Barreno de Faria Martins (1939-2016), Maria de Fátima de Bivar Velho da Costa (1938-2020) e Maria Teresa de Mascarenhas Horta Barros (1937-). Composta por 120 textos, entre cartas, poemas, relatórios, prosa, citações e ensaios sobre a condição feminina daquela época, esta é considerada a primeira grande luta pela causa feminista em Portugal. Uma espécie de manifesto contra diferentes formas de opressão feminina, livro que se tornou um símbolo contra a ditadura portuguesa. Estas mulheres desafiaram o patriarcado, as convenções sociais e os homens que comandaram o Estado Novo.

O livro foi censurado e proibido nos anos 1970, por ser considerado pornográfico e atentatório da moral pública, e as Marias foram acusadas pelos agentes da polícia política do Estado Novo (PIDE), quando na realidade elas denunciam as opressões sofridas pelas mulheres, a violência colonial e fascista de uma época que não se deve apagar. Traduzido na Europa e nos Estados Unidos, ainda hoje está entre as obras portuguesas mais traduzidas.

As autoras foram perseguidas, sofreram uma acção judicial. Houve cobertura da imprensa internacional e foi o apoio e as manifestações feministas mundiais a favor das Três Marias que as ajudaram a se libertarem das acusações criminais. O julgamento ocorreu em 1974 e foram absolvidas. Alguns dos nomes que as apoiaram foram: Simone de Beauvoir, Marguerite Duras, Doris Lessing, Delphine Seyrig e a brasileira Gilda Grillo, artista que na altura vivia nos EUA e foi a responsável pela divulgação do livro e dos problemas enfrentados pelas autoras e associados à proibição das Novas Cartas Portuguesas.

As Três Marias já tinham publicado livros individualmente antes da obra coletiva, textos com dimensão política e questionadora dos papéis sociais e sexuais da Mulher; a exemplo, Maina Mendes (1969), de Maria Velho da Costa; Os outros legítimos superiores (1970), de Maria Isabel Barreno; e Minha senhora de mim (1971), de Maria Teresa Horta.

O filme, por sua vez, consiste em entrevistas que Ana Luísa Amaral fez com cada uma das Marias, separadamente, em suas casas. Para todas, foram colocadas as mesmas questões.

As realizadoras através do cinema colocam em diálogo as três autoras e explicitam o impacto do livro, mas pouco relacionam ou mostram o ativismo feminista português daquele período, para além do que contam as Marias. Embora a PIDE cerceasse a vida das pessoas, deviam existir mais mulheres feministas-ativistas em Portugal.

A montagem alterna camadas de realidade, história e política, e a memória feminina, imagens filmadas a cores, com material de arquivo e desenhos a preto-e-branco (do artista brasileiro EF Sama) com efeitos de animação. É muito comum em trabalhos documentais utilizar material de arquivo e entrevistas, e é muito desafiante ser inovador na linguagem documental.

No debate do filme, a montadora disse que ao ser convidada para integrar a equipa técnica, não sabia nada sobre as autoras e o livro, e então decidiu ler a obra antes de começar a editar o filme.

Senti falta de ver as Três Marias juntas em algum momento do filme. Duas delas faleceram entre 2016 e 2020, mas dentro do período de realização do filme ainda estavam vivas, o que me fez pensar que no plano da realidade as Marias tivessem rompido a amizade. De certa forma, Maria Teresa Horta deixa entrever isto no filme, quando diz que as suas vidas tomaram caminhos diferentes. Questionei Luísa Sequeira no debate do filme e ela disse-me que tentou, mas não foi possível filmá-las em conjunto, sem explicitar uma razão precisa.

Das três escritoras, a única ainda viva é Teresa Horta, e no filme é a mais perfomativa e feminista das Três Marias. Ao narrar a sua experiência de forma leve, deu outro significado ao passado tortuoso que viveu. O tempo tem esta capacidade de suavizar até mesmos marcas indeléveis.

O filme foi exibido no maior auditório da Culturgest, lotado e, para minha surpresa positiva, havia muitos jovens (mulheres e homens). É muito louvável ver jovens interessados na história do feminismo, em especial, num país conservador e tradicional como é Portugal. Isto dá-nos esperança, em tempos que o machismo e o patriarcado, infelizmente, ainda definem e comandam a vida de muitas mulheres, seja através de leis, relações familiares ou no mercado de trabalho.

O filme das Luísas (e Marias) tem como título “O que podem as palavras“, uma ode à literatura.
Como atuo no cinema fiquei a pensar, o que podem as imagens? As imagens produzidas no cinema podem testemunhar factos, criar narrativas, conectar pessoas, desconstruir ou reconstruir verdades, contextualizar a história de uma época, representar e ressignificar experiências, culturas e o mundo em que vivemos, comunicar de uma forma diferente da literatura (e das outras artes). As imagens-cinema podem ser vistas com enquadramentos específicos, através de cenas curtas ou extensas, planos abertos ou fechados, ritmos pacientes ou rápidos, filmados em locações reais ou estúdio, com luz natural ou artificial, com estética e linguagem própria carregada de linhas de força; imagens que podem ser sentidas e até mesmo ouvidas por meio dos sons que as acompanham. As imagens em movimento contribuem para preservar o que foi vivido e para relembrar marcas dolorosas de um passado opressivo, como é o caso retratado no filme “O que podem as palavras“, que atualiza nos dias que correm, a notável história das Três Marias.

Não é a primeira vez que a realizadora Luísa Sequeira resgata a memória de mulheres. Em 2017, ela fez o documentário “Quem é Bárbara Virgínia?” , filme sobre a primeira cineasta portuguesa Bárbara Virgínia. Mais que aconselho!

Pontuação Geral
Lídia Ars Mello
o-que-podem-as-palavras-atualiza-a-notavel-historia-das-tres-marias"O que podem as palavras" tem um caráter coletivo, visto que foi feito por várias mãos, pensamentos e olhos de Três Luísas e Três Marias.