Duas mulheres sobem as escadas de um prédio às escuras, o elevador está avariado, é véspera de Natal e dá a ideia que se dirigem para algo que estará à margem da lei, mas sem a certeza do quê. Quando finalmente chegam, um homem leva uma delas para uma maca e pede-lhe dinheiro. A conversa parece apontar para o desespero de todos os envolvidos, mas ainda não se esclareceu o que é que se procura. É com esta cena, ambígua e que joga continuamente com as nossas expectativas baseada em anos de policiamento dos corpos das mulheres, que Priscyla Bettim e Renato Coelho começam o seu “A Cidade dos Abismos”. Depois disso há de tudo: mal-entendidos, assassinatos, perseguições e sonhos, muitos sonhos.

Se, nas cenas mais “realistas” (na falta de uma melhor palavra), tudo é demasiado teatral (nos tempos e na forma demasiado consciente de enunciar), estas são cruzadas com poemas ditos com emoção ou momentos surreais que invocam Lynch, onde, ainda que não ganhe nunca a velocidade de um filme de Hollywood, o filme ganha, pelo menos, em onirismo e vai, ao mesmo tempo, retratando uma parte da população urbana do Brasil que vive à margem, não por escolha própria, mas que, mesmo assim, vai formando uma comunidade. E é nas personagens e na comunidade que o filme encontra a sua força, com a história, por vezes, a perder-se em becos sem saída e num final demasiado realista e fantasioso (ao mesmo tempo, sim) ou com a estética a tornar-se demasiado etnográfica ou experimental sem servir o que é contado.

Com ambos os realizadores doutorados em Multimédia, é normal que a importância aqui seja colocada na forma da obra e não tanto na narrativa tradicional. Ainda assim, para quem for capaz de tolerar alguns momentos mais excessivos de experimentalismo, este é um filme curioso que funciona como um documento de modernidade brasileira e um documentário de todos os que são excluídos da “normalidade” e cuja precariedade imposta nada tem a ver com o seu valor como pessoas.

Pontuação Geral
João Miranda
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