Segunda-feira, 20 Maio

Sessões na Cinemateca – Escolhas de 28 de fevereiro a 5 de março

No mês de fevereiro a Cinemateca prestou homenagem a Rogério Samora (1959-2021), após a sua precoce morte em dezembro do ano passado. O ator deixou uma carreira de 40 anos em que se tornou uma presença permanente junto do público português através do cinema, do teatro e da televisão. Num ciclo destinado a relembrar o talento do ator, exibiram-se alguns dos seus mais marcantes desempenhos no cinema português, havendo esta semana uma última oportunidade para ver o seu trabalho no grande ecrã.

Já em março programa-se uma outra homenagem a um grande ator recentemente falecido: Sidney Poitier (1927–2022). O primeiro ator negro a receber o Oscar de melhor ator principal, Poitier tornou-se um ícone antirracista, e foi um dos responsáveis pelo crescente reconhecimento dos atores negros a partir das décadas de 1950 e 1960. Numa época em que poucos ou nenhuns atores afro-americanos tinham tido oportunidades de protagonismo no cinema, ou mesmo de interpretar papéis que não fossem dominados pelo estereótipo racial, Poitier acompanhou uma importante evolução de perspetiva social na indústria cinematográfica de Hollywood, abrindo portas para os atores negros que se lhe seguiram. O ator participou em mais de 50 filmes, construindo muitas das suas personagens em filmes que questionavam a questão racial, e rejeitando pelo caminho muitos filmes que prolongavam estereótipos de subserviência social e racial. De entre os quatro filmes selecionados pela Cinemateca para este “In Memoriam”, salientamos aquele que valeu a Poitier a sua primeira nomeação – histórica – aos Oscars.

Em paralelo e em sintonia, a Cinemateca promove também este mês um reconhecimento da obra pioneira do cinema afro-americano de Oscar Micheaux (1884-1951). Autor de cerca de quatro dezenas de filmes, Micheaux foi um dos pioneiros do cinema independente americano feito por e para afro-americanos. Misturando entretenimento, folclore, análise social e as restrições do cinema de baixíssimo orçamento, o cinema afro-americano independente da primeira metade do século XX constitui um capítulo fascinante, embora pouco conhecido, da herança cinematográfica dos EUA. Oscar Micheaux, nome maior desta história por contar, era filho de escravos emancipados e trabalhou, durante a juventude, nos empregos mais usuais para os seus companheiros negros: engraxador, trabalhador rural, porteiro nos comboios. Depois de publicar três romances e criar uma pequena editora, resolveu adaptar ao cinema o seu terceiro livro – e assim começou uma carreira que se prolongou até 1948. Nos últimos anos a sua obra tem sido objeto de um profícuo trabalho de recuperação de materiais que estavam dispersos por arquivos de todo o mundo, o que permitiu a sua revalorização como cineasta. Recomendamos assistir a pelo menos um dos seus filmes em exibição.

Finalmente, esta semana inicia-se também na Cinemateca o ciclo “Susan Sontag – Imagens de Pensamento”, que através de vinte filmes tem como principal objetivo dar a conhecer a quase desconhecida obra cinematográfica da célebre escritora e filósofa norte-americana Susan Sontag (1933-2004). Sontag realizou apenas quatro filmes, mas, vertendo o seu pensamento em imagens e estas em pensamento, foi cineasta-antes-de-o-ser quando escreveu sobre os realizadores e filmes que admirava. Advogava uma estética minimal, silenciosa, sensível à “superfície” da forma e facilitadora de uma nova postura crítica que postulou no seu ensaio «Contra a Interpretação», designadamente apelando a uma erótica, ao invés de uma hermenêutica, da imagem. Neste ciclo inclui-se um conjunto de filmes representativos de aspetos importantes do pensamento plural, sensível e imprevisível de Sontag, incluindo ainda algumas das suas preferências cinéfilas mais incontornáveis (Bresson, Godard, Fassbinder), tal como as manifestou em textos críticos sobre filmes ou realizadores. Através de uma mistura original de obras canónicas, de ficção e de documentário, com obras obscuras, série B ou underground, expõem-se linhas do seu pensamento filosófico, dando-se, assim, conta do seu grande ecletismo e impressionante plasticidade. Começamos esta semana com o primeiro filme que realizou.

Estas são as nossas sugestões para as sessões a decorrer na semana de 28 de fevereiro a 5 de março:

As Mil e Uma Noites: Volume 1 – O Inquieto (2015) – Segunda-feira, 28 de fevereiro, 19h30, Sala Luís de Pina. O Inquieto corresponde ao primeiro tomo do tríptico cinematográfico As Mil e Uma Noites, que se completa com O Desolado e O Encantado. O filme toma o título e a estrutura dos famosos contos árabes para construir um encadeamento de histórias baseadas em acontecimentos verídicos, recolhidos por um grupo de jornalistas, mergulhados no universo fantasioso e onírico muito próprio de Miguel Gomes, e funde o retrato da realidade social e política de Portugal durante a austeridade com a ficção, lembrando que “imaginário e realidade nunca puderam viver um sem o outro”. No papel secundário de primeiro-ministro encontramos Rogério Samora.

The Defiant Ones (Os Audaciosos, 1958) – Quarta-feira, 2 de março, 15h30, Sala M. Félix Ribeiro // Quinta-feira, 3 de março, 19h30, Sala Luís de Pina. Tony Curtis e Sidney Poitier encarnam, neste filme, dois presidiários que fogem algemados um ao outro depois de um acidente com o camião que os transportava. A repulsa racista que os separa é posta em causa à medida que se veem obrigados a superar o ódio que nutrem para sobreviver aos perigos que enfrentam e conquistarem a liberdade. Desta forma, o realizador, Stanley Kramer, abre o espaço para uma reflexão sobre o valor da amizade, da lealdade e do sacrifício numa época em que o problema das relações raciais se avultava e tornava cada vez mais visíveis nos Estados Unidos.

Within Our Gates (1920) – Quinta-feira, 3 de março, 21h30, Sala M. Félix Ribeiro. Sessão apresentada por Richard Peña e com acompanhamento ao piano por Daniel Schvetz. Esta é a primeira longa-metragem sobrevivente de um realizador afro-americano e centra-se na jovem idealista Sylvia Landry (Evelyn Preer, uma das primeiras estrelas negras) que tenta arrecadar dinheiro para uma escola primária para crianças negras, enfrentando a política racial da época. O passado de Sylvia é revelado numa série de flashbacks, nomeadamente na sequência mais famosa do filme: o linchamento dos seus pais por uma multidão branca. A encenação da cena por Oscar Micheaux é surpreendente na sua franqueza e diz muito sobre o destemor e a vontade do realizador de abordar assuntos tabus. O filme aborda outros temas polémicos, como a oposição entre a vida rural e a influência da cidade e o uso da religião como meio de enganar a comunidade negra.

Duett För Kannibaler (Dueto para Canibais, 1969) – Sexta-feira, 4 de março, 19h00, Sala M. Félix Ribeiro. A primeira longa-metragem de Susan Sontag torna possível em certa medida “ver em ação” o pensamento da filósofa, designadamente a sua apologia de uma estética “grau zero”. Aqui cruzam-se questões presentes no cinema de alguns dos realizadores mais venerados pela filósofa, começando por Ingmar Bergman e Jean-Luc Godard, através de um triângulo de personagens sobre o vício, o poder, o amour fou e a crueldade. O casal é encarnado pela italiana Adriana Asti e, a fazer do político Bauer, o sueco Lars Ekborg (ator bergmaniano) em ponto de rebuçado em termos de neura e simples sadismo. Falso thriller político com uma requintada teia amorosa, que tem tanto de lúdica como de perversa. Na próxima segunda-feira, dia 7 de março, o filme voltará a ser exibido às 19h30 na Sala Luís de Pina.

Love Streams (Amantes, 1984) & Wanda (1970) – Sábado, 5 de março, 15h30, Sala M. Félix Ribeiro. O último filme “pessoal” de John Cassavetes, Love Streams é uma despedida em beleza, uma obra extraordinariamente intensa em termos emocionais, que o cineasta dirige com a austeridade de quem faz “teatro no cinema”. Cassavetes interpreta o papel de um escritor alcoólico e decadente, enquanto Gena Rowlands faz de sua irmã. Única longa-metragem realizada pela atriz Barbara Loden, Wanda é uma experiência radical e independente. Filmado em 16 mm, revela a história de uma mulher solitária e pobre na Pensilvânia e um olhar cru sobre a solidão americana, as vidas esquecidas da sua classe trabalhadora, e de alguém que, sufocada por uma vida opressora, deixa-se levar por um desesperado crime e um homem abusivo. Um segredo tardiamente revelado e uma das personagens mais fascinantes da História do cinema. Duas obras desesperadas que revelam perspetivas únicas sobre a condição humana, ambas com os seus realizadores-atores simultaneamente atrás e à frente da câmara.

Nota: Na segunda-feira voltará a ser exibido o filme The Life and Times of Judge Roy Bean (O Juiz Roy Bean, 1972), recomendado pelo C7nema na semana passada.

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