Segunda-feira, 6 Maio

Sessões na Cinemateca – Escolhas de 28 de março a 2 de abril

Para fechar o mês de março a Cinemateca programou um pequeno mas importante ciclo em torno d’ “O Cinema Etnográfico do Marquês de Wavrin”. A recente redescoberta e digitalização do trabalho de Robert de Wavrin (1888-1971) pela Cinémathèque Royale de Belgique foi uma dádiva para a antropologia e também para o cinema documental, firmando-o como um importante precursor do cinema etnográfico. Dos mais de seis mil metros de película por si filmados na América do Sul entre 1920 e 1938 restam hoje quatro filmes, a ser apresentados neste ciclo.

Wavrin embarcou numa sucessão de viagens por quase todo esse continente, nas quais desenvolveu uma progressiva paixão por regiões remotas e por povos indígenas até então desconhecidos. No seu trabalho singular coexistem ambiguamente dois registos aparentemente paradoxais: a excentricidade aristocrática do “explorador branco” atraído pelo exótico e pelo desconhecido e o confronto com o racismo do espírito colonizador e da “superioridade ocidental” que incorporavam o vocabulário científico do seu tempo. Wavrin terá sido, no entanto, um dos primeiros europeus a denunciar a crueldade da exploração empresarial e militar daquelas regiões e mostrava um interesse genuíno pelos povos que documentou. O seu trabalho não se foca primordialmente na diferença para com esse “Outro”, mas numa antropologia centrada no quotidiano indígena e no desenvolvimento de uma verdadeira intimidade relacional entre o cineasta e as comunidades nativas, resultado demonstrado na proximidade e à vontade com que as pessoas encaravam a sua câmara.

Esta semana contamos ainda com uma última sessão do ciclo “Susan Sontag – Imagens de Pensamento”, que através de vinte filmes tem vindo a dar a conhecer a quase desconhecida obra cinematográfica da célebre escritora e filósofa norte-americana Susan Sontag (1933-2004). Sontag realizou apenas quatro filmes, mas, vertendo o seu pensamento em imagens e estas em pensamento, foi cineasta-antes-de-o-ser quando escreveu sobre os realizadores e filmes que admirava. Neste ciclo incluíram-se filmes representativos de aspetos importantes do pensamento de Sontag, incluindo ainda algumas das suas preferências cinéfilas mais incontornáveis, tal como as manifestou em textos críticos sobre filmes ou realizadores, como é o caso desta última escolha.

Já para abril, em colaboração com a Festa do Cinema Italiano, a Cinemateca preparou um programa intitulado “Pasolini Revisitado”, em que se pretende investigar outros modos da relação de Pier Paolo Pasolini com o cinema, e do cinema com ele, celebrando-se o ano do centenário do seu nascimento. Este ciclo tem duas vertentes: por um lado, apresenta filmes que contaram com a participação ativa de Pasolini (como argumentista, produtor, ator, etc.), em que é fascinante procurar os traços da sua presença e detetar o que ele trouxe ao universo de outros realizadores; por outro lado, incluem-se filmes, todos ou quase todos posteriores à sua morte, em que Pasolini se faz ainda uma presença, refletindo a perenidade do seu legado. Esta viagem pela influência de Pasolini enquadra ainda a apresentação, que não podia também faltar, de alguns dos títulos maiores da sua obra enquanto realizador, como é o caso das duas recomendações que temos esta semana.

A completar as escolhas desta semana está ainda a sessão “Inadjetivável” do mês de abril, dedicada a um dos filmes mais aclamados dos anos 1950, e ainda uma exibição na Cinemateca Júnior do filme que lançou a carreira de um dos atores mais aclamados da sua geração, Leonardo DiCaprio.

Estas são as nossas sugestões para as sessões a decorrer na semana de 28 de março a 2 de abril:

Begotten (1989) – Terça-feira, 29 de março, 15h30, Sala M. Félix Ribeiro // Quarta-feira, 30 de março, 19h30, Sala Luís de Pina. Abraçado pela crítica como uma experiência-limite no campo do cinema experimental, a ponto de Amos Vogel o ter considerado uma “obra-prima alucinatória”, este título esquecido de E. Elias Merhige propõe-se reimaginar a história do Genesis como se fosse um filme mudo algo incongruente que, depois de desenterrado, se mostrou finalmente ao mundo. Sem diálogos e num preto-e-branco cheio de grão, BEGOTTEN chocou e inebriou quem o viu por causa da sua estética primitiva e violência gráfica, carecendo hoje de uma nova descoberta. Susan Sontag considerou-o um extraordinário primeiro filme, um dos dez filmes mais importantes dos tempos modernos.

Au Pays du Scalp (1931) – Quinta-feira, 31 de março, 19h00, Sala M. Félix Ribeiro. Filmado entre 1928 e 1930, este é o filme de Robert de Wavrin que obteve mais sucesso e reconhecimento, pelo seu valor etnográfico e por ser (quase) destituído de propaganda colonial. Apesar do título, que se foca nos rituais de encolhimento de cabeças dos índios Shuar, o filme aborda uma grande abrangência de grupos indígenas, destacando-se pela sensibilidade do seu estudo e pela proximidade que demonstra criar com as pessoas que filma. Montado por Alberto Cavalcanti, e com música original de Maurice Joubert, Au Pays du Scalp colocou Wavrin numa posição de destaque dentro de um crescente movimento do cinema etnográfico que, nos anos 20 e 30, demonstravam interesse nas missões científicas, rejeitando expedições apenas motivadas por interesses económicos e imperialistas.

All About Eve (Eva, 1950) – Sexta-feira, 1 de abril, 15h30, Sala M. Félix Ribeiro. Um dos mais célebres papéis de Bette Davis, numa comédia cruel realizada por Joseph L. Mankiewicz sobre o arrivismo, e um dos grandes clássicos da História do cinema. Eve Harrington, jovem inexperiente mas ambiciosa, insinua-se junto da famosa atriz Margo Channing, e do seu grupo de amigos. Eve torna-se a pessoa de confiança de Margo a quem a idade não vai perdoando. Pouco a pouco, Eve encanta todos e cai nas graças de um eminente critico (George Sanders). Usando de todas as artimanhas consegue finalmente depor Margo e ser ela a receber os louros.

Uccellacci e Uccelini (Passarinhos e Passarões, 1966) – Sexta-feira, 1 de abril, 19h00, Sala M. Félix Ribeiro, com a presença de Ninetto Davoli. É um conto filosófico de Pier Paolo Pasolini, onde Totò tem uma das suas maiores criações. Enquanto se deslocam pela estrada fora e através do tempo, com uma incursão à época de S. Francisco de Assis, Totò e o seu filho (Ninetto Davoli) encontram um corvo falante (e intelectual de esquerda) que os acompanha na digressão e vai comentando as peripécias que se sucedem de uma forma que o torna insuportável, pelo que os nossos heróis serão forçados a tomar uma medida drástica.

What’s Eating Gilbert Grape (Gilbert Grape, 1993) – Sábado, 2 de março, 15h00, Salão Foz. Numa cidade de província do Midwest, o jovem Gilbert Grape divide-se entre um irmão com deficiência intelectual, uma mãe depressiva e obesa, duas irmãs irrequietas, uma casa que ameaça derrocada e o desejo natural de uma vida independente, sem compromissos e amarras. O filme, realizado por Lasse Hallström e reunindo um elenco de jovens atores na altura em rápida ascensão (Johnny Depp, Juliette Lewis), foi o grande responsável pela revelação de um promissor talento de 18 anos: Leonardo DiCaprio.

Edipo Re (Édipo Rei, 1967) – Sábado, 2 de março, 21h30, Sala M. Félix Ribeiro, com as presenças de Ninetto Davoli e Isabel Ruth. “O meu primeiro filme em que respeitei certas regras inerentes à produção cinematográfica”, declarou Pasolini sobre Édipo Rei. Este é o filme em que Pasolini encontra o sistema de cinema que desenvolveria em filmes posteriores. O cineasta narra escrupulosamente o drama de Édipo, filmado em Marrocos para abolir os clichés sobre a representação da Antiguidade grega e insere um prólogo e um epílogo situados na Itália do seculo XX, o que é uma maneira subtil de introduzir a leitura freudiana do mito de Édipo, um elemento central da cultura do seculo XX. No papel principal, ao invés de um ator de teatro, escolheu Franco Citti, “um inocente, um homem simples, a fim de que a sua descoberta da verdade fosse primeiro dramática e depois agressiva”, nas palavras de Pasolini.

Nota: Para fechar a programação de março voltam a ser exibidos vários filmes recomendados pelo C7nema ao longo das passadas semanas, nomeadamente Europa ’51 (1952), Dieu Sait Quoi (1993), L’Acrobate (1975), bem como as curtas Bassae (1964) e Méditerranée (1963).

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