Um dos maiores festivais do “cinema do real” da Europa, o Visions du Réel deu o seu pontapé de saída esta quinta-feira, 15 de abril, com o chamariz de “Healers” (Les Guérisseurs), de Marie-Eve Hildbrand, como o filme oficial de abertura, mas com muitos motivos de interesse um pouco por toda a sua programação.
A começar pelo filme que apresentou no dia 14, em jeito de projeção especial pré-certame. O filme exibido foi “Le Chant des vivants”, obra de Cécile Allegra que aborda a questão dos imigrantes de uma forma pouco convencional. No foco estão “jovens sobreviventes de diferentes partes da África que na aldeia de Conques, França, encontraram um espaço terapêutico onde aprendem a superar o passado e, através da música, a imaginar um novo futuro“. Traumatizados por passados marcados por tragédias, diversos abusos e um permanente estado de risco de vida, estes africanos partilham dramas profundos, muitos deles absolutamente tratados como escravos vendidos a soldo num dos países que atravessaram. É daquilo que viveram na Líbia, local descrito pelos próprios como “pior que o Inferno”, que surgem os testemunhos mais marcantes, todos registados pela cineasta, que juntamente com eles – num “porto seguro” – observa o seu cantar, dançar e celebrar a felicidade de estarem vivos. Um filme doloroso e aconchegante em doses similares sobre vidas marcadas para sempre.
Foi de França igualmente, já no dia 15 e em plena competição de Curtas e Médias Metragens, que veio também o primeiro choque frontal e urbano, num filme que nos leva até Fos-sur-Mer, cidade do sul da França repleta de refinarias e indústrias químicas onde os humanos tentam resistir perante paisagens ambíguas. A relação homem-natureza é o foco central, destacando-se o grau de adaptabilidade do ser humano a locais muito longe dos padrões de beleza e qualidade de vida que a maioria projeta. “Là où nous sommes”, de Amélie Bargetzi, é essencial para entender que em plena Europa também existem pequenas “Norilsk” à beira-mar plantadas.
E seguindo na confrontação homem-natureza, na competição principal estreou mundialmente “Holgut”, retrato da relação complexa entre estes elementos, que normalmente culmina em processos de extinção. O cenário é a tundra da Sibéria e o aquecimento global é uma peça essencial de um híbrido que certamente chegará aos cinemas nacionais, provavelmente no IndieLisboa.
Do gelo da Rússia passamos, igualmente na competição internacional, para o sol da Flórida em “The Bubble”, onde o capitalismo e a herança Trump criou uma bolha civilizacional composta por mais de 150 mil reformados (a maioria branca, com posses e republicana) que apoderaram-se do espaço no condado Sumtey, pressionando o mercado imobiliário e todas as atividades económicas da região.
Houve ainda tempo para os primeiros dois filmes dos cineastas convidados para os ateliers do Cinema Du Réel, Tatiana Huezo (El lugar más pequeño) e Pietro Marcello (Bella e Perduta), e “Surfaces” [Competição de Curtas e Médias Metragens], uma viagem com Cristina Motta, entre a Argentina e a Colômbia, aos corpos femininos, vítimas das violências nos dois países, que ao longo dos rios encontraram o destino final.