Quinta-feira, 28 Março

O cinema-verité e revolucionário de Heiny Srour

Antes de tudo, quem é Heiny Srour?

Uma cineasta do Médio Oriente (argumentista, produtora e editora), de classe média, feminista e revolucionária para o seu tempo e território geográfico. Nascida em Beirute, Líbano, em 1945, onde se licenciou em Sociologia na Universidade Francesa de Beirute e fez o seu doutoramento sobre a importância das mulheres libanesas e árabes, em Antropologia na Sorbonne-Paris, Heiny Srour foi aluna de Jean Rouch, conhecido pelo cinema verité, cinema directo, por filmar com poucos meios, câmara na mão, sem atores e com uma pequena equipa.

Em 1969, enquanto fazia o seu doutoramento, Srour trabalhava como jornalista para uma revista, quando descobriu a luta da Frente Popular para a Libertação do Golfo Pérsico Ocupado, uma Frente que desencadeou uma revolução na província de Dhofar contra o Sultão de Omã, apoiado pelos colonizadores britânicos.

Srour não tem diploma de cinema e foi a primeira realizadora árabe feminina a ter um filme exibido no prestigioso Festival de Cinema de Cannes, The Hour of Liberation Has Arrived” (1974). Recordemos que nesta época ela vinha de uma região periférica do cinema, sem produção cinematográfica expressiva, e num tempo em que poucas mulheres realizadoras tinham visibilidade na Sétima Arte, sendo uma delas a francesa Agnès Varda.

Srour sempre foi uma ativista cinematográfica e não só, dando visibilidade às mulheres libanesas e árabes de outros países.

The Hour of Liberation Has Arrived” é um audacioso documentário de 60 minutos, exibido na Cinemateca Portuguesa a 16/11 no programa do Olhares do Mediterrâneo- Women’s Film Festival. Um filme rodado em 16mm, com uma pequena equipa em 1971, durante poucos anos em Omã (região de Dhofar), literalmente num campo de guerra, cuja montagem combina material de arquivo e imagens filmadas, para criar um testemunho e documento  histórico sobre as mulheres feministas libanesas que lutaram em batalhas numa região árabe polvorosa.

Estas mulheres, na sua maioria extremamente jovens (a partir dos 15 anos), empreenderam uma luta armada ao lado das suas famílias e amigos para defender os seus territórios e as suas próprias vidas, na chamada Frente de Libertação, organizada de forma democrática e feminista, incluindo anciãos, adultos e crianças, mulheres e homens camponeses. Um movimento que considerava as mulheres com os mesmos direitos e responsabilidades que os homens. Sem qualquer medo, unidos e inspirados pelos movimentos de luta e resistência da Revolução Cubana e do povo vietnamita, pegaram em armas e enfrentaram os invasores, o colonizador britânico europeu em busca da exploração do petróleo e, que consequentemente, provocava precarização da vida deste povo árabe. A Frente de Libertação Popular conseguiu libertar a província de Dhofar, como Heiny Srour arriscadamente e corajosamente regista neste filme, filmado sob a escolta de membros da Frente de Libertação Popular durante o conflito armado.

Após a exibição do filme na Cinemateca Portuguesa, no debate, a realizadora disse que durante as filmagens teve muito medo, afinal estava numa área de bombardeamentos contínuo. Embora documental, ela disse também que escreveu o guião e que pouco mudou durante a edição, pois filmou em formato de 16 mm e numa altura em que a ilha de edição era linear, tudo manual; diferente das ilhas de edição não lineares dos formatos digitais atuais.

A realizadora declarou que este filme foi inspirado no documental argentino La hora de los hornos(1968) de Fernando Solanas, um cinema ativista revolucionário. Filme que é dividido em partes: “Neocolonialismo e Violência“; “Acto de Libertação“, “Crónica do Peronismo (1945-1955)“, “Crónica da Resistência (1955-1966)“; e “Violência e Libertação“.

A sua segunda longa-metragem “Leila and the Wolves“(1984), foi também exibida na Cinemateca no dia 15/11, com a presença da realizadora e como parte do Festival Olhares do Mediterrâneo, sendo os “Lobos” (wolves) as forças colonizadoras e repressivas. Embora com temática pesada, o filme apresenta uma narrativa e ações bem humoradas das mulheres, mesmo em terrenos minados pela guerra. 

Heiny Srour, assim como em “The Hour of Liberation Has Arrived”, destaca a bravura e o poder das mulheres palestinianas e árabes libanesas destemidas e feministas que lutam com e ao lado do seu povo, resistindo às guerras provocadas pelos invasores estrangeiros.

Em algumas cenas, elas colocam armas e projéteis dentro da comida ou amarrados aos seus próprios corpos para leva-las até os seus maridos, irmãos e pais na batalha contra os opressores.

Já a sua primeira longa-metragem documental, “Rising Above: Women of Vietnam” (1995), não foi projetada na Cinemateca Portuguesa. Um filme que foca no paradeiro de cinco mulheres feministas e ousadas, após o fim da Guerra do Vietnam. As mulheres vietnamitas, incluindo estas cinco, lutaram e venceram obstáculos aparentemente intransponíveis durante esta guerra.

No debate sobre os seus filmes, perguntei a Srour o que mudou relativamente aos direitos das mulheres, em especial, das mulheres libanesas, desde que ela realizou o seu cinema. Ela relatou que hoje, no Líbano, as mulheres de classe média e alta têm seus direitos respeitados, enquanto na classe socialmente desfavorecida isto ainda não acontece. Ela também disse que são as mulheres as que mais têm feito filmes no seu país.

Nos três documentários pode-se ver que o ativismo fílmico-político feminista de Srour centra-se nos direitos e valorização das mulheres libanesas, palestinianas e outras árabes, mulheres que são mostradas através das suas lentes de forma empoderada, libertária, revolucionária e inspiradora.

A estética dos seus filmes, não só porque são rodados em zonas de conflito e perigo constante, são feitos com uma equipa pequena, recursos escassos e preferência por não atores. E inclui a inspiração do cinema político e revolucionário de Fernando Solanas.

O filme The Hour of Liberation Has Arrived, está disponível gratuitamente online.

Além de exibir seus dois principais filmes no Festival, Srour ofereceu a Masterclass | Making World-changing Films

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