Sexta-feira, 19 Abril

‘Independências’, o gesto godardiano de Luiz Fernando Carvalho

O mais revolucionário realizador que a TV brasileira já conheceu, responsável pela ousadia de usar planos-sequência no horário nobre (num telefilme como Os Homens Querem Paz, de 1991), e por desconstruir a noção de épico em telenovelas (vide Renascer e Rei do Gado), Luiz Fernando Carvalho liberta o Jean-Luc Godard há muito hospedado no seu olhar, ao mexer na História em seu novo projeto, Independências.

No dia 7 de setembro, o realizador da aclamada longa-metragem Lavoura Arcaica(2001) lança na TV Cultura, uma rede pública da sua pátria, a minissérie em 16 episódios que filmou em meio à pandemia, repensando o simbolismo colonial. O primeiro episódio, projetado em São Paulo, na terça-feira, numa sessão para convidados – da qual o C7nema fez parte -, é um esplendor sinestésico, misturando imagens de arquivo de aldeias, fotos, pinturas e uma atuação devastadora de Ilana Kaplan como Carlota Joaquina.

Isabél Zuaa é outra das forças que incandescem a abordagem godardiana de Luiz Fernando, assim como Ywy’zar Guajajara. Esse capítulo abre-alas promove, na sua dramaturgia (a um só tempo barroca e pop), uma cartografia da indignidade humana imposta aos povos originários da Pangeia latina e aos escravizados africanos. É uma espécie de La Chinoise (1967), com toda a semiótica do Godard de ontem e de hoje. E no seu elenco estão gigantes dos palcos como Walderez de Barros, Wilson Rabello, Antonio Fagundes, Renato Borghi, Pedro Paulo Rangel, Cacá Carvalho e Marat Descartes. O nome de Walderez engrossa um rol de presenças de ícones da força feminina como Lea Garcia, Fafá de Belém e Margareth Menezes.

Na entrevista a seguir, Carvalho explica ao C7 esse painel de sinestesia que criou, cuja estreia coincide com o tenso processo das eleições presidenciais no Brasil.   

O diretor de TV e cineasta Luiz Fernando Carvalho (foto de Leandro Pagliaro)

O que simboliza este 7 de setembro para si, em meio à polarização do país e as crises democráticas que vivemos?

Uma falácia. Quando fomos chamados para esse projeto, a conversa inicial envolvia algo que celebrasse os 200 anos da Independência, o que se demarca no 7 de setembro. Mas tive dúvidas, pois não sei se existe alguma cosia para celebrar. Não sei nem se a ideia de nação, no Brasil, é algo que se possa afirmar. Acho que tudo neste país está em movimento, tudo dependendo do nosso esforço, consciência e emoção. E, nessa lógica, foi um milagre fazer essa série agora, pois ela foi feita dentro da pandemia, com um preço de capítulo sendo um terço do que se gasta numa série de streaming. Um projeto todo colaborativo em que a decisão acerca da luz conta com o pensamento de todos, sobretudo da equipe de maquinária que está comigo agora.

Acerca do colorido da série, como é falar de um tempo tão tenebroso com as luzes que você tem? Que luzes são essas?

Estou falando sobre o período em que a ideia iluminista continua sendo uma referência para todo um segmento planetário. O Brasil que retrato não admite outros saberes e culturas que não a iluminista, que não a ocidental, europeia e branca. E isso justifica um colonialismo racista que está connosco até hoje, no plano da linguagem. É no campo da linguagem que o Diabo lambe os beiços. A narrativa é contra essa ideia iluminista do pensamento em linha reta, do mundo acabado e formato. Por isso, preciso levar à TV aberta, pública, outras cores. Preciso entrar com uma ideia prismática das luzes, dos figurinos, das maquilhagens, uma ideia quase que polifónica. E isso é barroco e Andy Warhol ao mesmo tempo. É pop porque precisa ser pop. Esta desconstrução precisa ser popularizada no sentido de ir para uma televisão aberta. É uma visão do nosso passado, e do presente, com uma função de seduzir aquele menino de subúrbio que acha um saco a aula de História do Brasil, que pula o muro da escola, pra fugir das classes, ou fica no celular. Mas aqui, quando ele ouve falar em D. João da maneira polifónica e também policromática que fiz, ele se sente diante de uma banda desenhada, do videogame e do Tik Tok. Eu me aproprio dessa nova tecnologia para desconstruir uma História falsa.

Qual o desafio de lidar com essas caricaturas históricas?

O desafio parte da necessidade de discutir representação. A versão caricatural e cómica está espelhando uma versão alienada da nossa formação. Mesmo no cinema, são poucas as nossas exceções. A História do Brasil ora é tratada como caricatura, ora é romanceada em abordagens novelescas. Mas, na prática, sua História é trágica, cheia de genocídios, com uma produção em massa de exclusão.

A sua obra alcançou, na TV e no cinema, uma dimensão autoral singular, sempre em diálogo com a literatura, ou com o teatro. Mas como esse diálogo com a palavra se dá aqui, no trabalho mais godardiano da sua carreira?

O meu olhar é híbrido. E continua a ser híbrido. Talvez, a ideia da crítica e da representação me aproxime de experiências mais próximas da vida, por isso, aqui, tenho que me aproximar de um sentimento de espiritualidade, de atemporalidade, de ancestralidade, da “jira” que se faz nas cerimónias religiosas de matriz africana, como o candomblé. Eu tenho que dilacerar a imagem. Isso inclui as luzes, os planos vazios sem nenhuma figura humana e sem nenhuma paisagem. E, nesse esforço, me aproximo de experiências cinéticas históricas do cinema. Por isso, concordo plenamente que tem o Godard ali. O lado godardiano vai do uso de legendas não como legendas, mas como palavras de ordem, como se fossem cartazes de passeata. Tudo vai fazer parte de um grafismo que dilacere códigos.

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