Sábado, 18 Maio

«Divino Amor» por André Gonçalves

E eis que a maior pérola da seleção do IndieLisboa 2019 estava guardada para o fim, numa secção não-competitiva… Gabriel Mascaro, à terceira longa-metragem, executa um salto de fé impressionante em termos artísticos, uma obra que arrisca o ridículo, portanto sendo da mesma linhagem da nova geração de autores que estão a recalibrar as expectativas que um espectador possa ter para o cinema de género. 

Mascaro mantém o erotismo da obra anterior, para fazer algo completamente diferente em termos formais (embora se possa dizer que o olhar contemplativo para os corpos começa a ser o seu grande traço de artista) e conspurcar a tranquilidade anterior com um “absurdismo realista”, usando um género de humor talvez apenas comparável a alguém como Yorgos Lanthimos (Canino) no seu apogeu. Claro que, dentro da distopia, há sempre o espectro de Orwell a pairar. 

Divino Amor é o nome de um grupo evangélico onde só casais entram, para se curar, e partilhar o amor. O ano é 2027, mas esta não é uma ficção científica tradicional, apesar do neon, que deu título ao seu filme anterior (Boi Neon) tenha aqui um grande destaque. Aqui, o “modernismo” que poderíamos esperar de um filme do género foca-se em algo tão básico como o controlo mais apertado de pessoas, havendo um indicador em cancelas públicas que indique o estado civil e a profissão de um indivíduo e detecte gravidez até… Um narrador infantil avisa-nos: o Carnaval deixou de ser a maior festa do ano; mas sim a festa do amor supremo, uma rave evangélica cujos hinos estão agora completamente convertidos às massas, numa sonoridade claramente adaptada ao pop. 

Joana é o rosto que observamos nessa festa. Trabalha como funcionária de uma conservatória, ajudando pessoas em processos de divórcio. Mas Joana, convicta na eternidade do laço que é o matrimónio, faz questão de fazer de tudo para que os casais não se separem, convidando até inclusivé para o culto Divino Amor. Para ela, a burocracia é igual a amor. E amor é ter fé, claro. Ela própria vive um casamento difícil, em que a infertilidade do marido é um obstáculo para a sua realização total. O marido, um florista para funerais, decide comprar da China uma lâmpada de infravermelhos, que isto de ter fé não parece estar a chegar. O tempo escasseia visivelmente. Não há folga para sequer sair do carro, por isso as confissões religiosas são feitas em trânsito num “stand” montado propositadamente para o efeito, numa das imagens visuais mais marcantes, que sentimos que irão definir a história de 2019 quando estivermos efetivamente em 2027.  

A melhor ficção científica é aquela que não perde paralelismo com a realidade que vivemos, usando um tempo não tão distante como autoproteção. Escapismo é ótimo, mas o cinema tem também que servir a política e educação. Aqui, é claro que o “Brasil em transe”, com a ascenção do evangelismo, que invadiu o Estado tornando-o dificilmente laico, já está aí à nossa volta. Ao contrário do que se poderia pensar, até com o tom de sátira, o que empurra verdadeiramente o filme para um patamar superior, é recusar a simplificar estas personagens, completamente reféns dos seus desejos pessoais, como todos nós. A sátira social existe, a guerrilha existe na recusa de tapar o que quer que seja, mas há um humanismo aqui também a coexistir que é o que ultimamente acaba por tornar este objeto um pequeno milagre divino. Bendito seja Gabriel Mascaro! Aleluia! 

André Gonçalves

Notícias