Sábado, 18 Maio

Premiado em Annecy, ‘Bob Cuspe’ saliva irreverência

Raramente uma animação brasileira de longa-metragem tem espaço no circuito exibidor do seu país, sobretudo uma voltada para adultos e pautada pelo escárnio como é o caso deBob Cuspe – Nós Não Gostamos de Gente”, de Cesar Cabral. Já depois de estrear no seu país, “Bob Cuspe” chega a Portugal através da Monstra. Pesa a seu favor uma vitória invejável na mostra Contrechamp do maior festival para filmes animados do mundo, Annecy, em França. Pesa positivamente também o facto de a trama – escrita por Cabral e Leandro Maciel – ser baseada numa banda desenhada que marcou uma época, criada pelo mais irreverente cartunista da imprensa do seu país: Arnaldo Angeli Filho.

A etílica Rê Bordosa e os brutais gazeteiros Skrotinhos integram o seu rol de criações, revisitado nessa trama que mistura “Mad Max” com “Tapa na Pantera” (curta sobre entorpecimento), meio “Repo Man”, meio “Mais Estranho Que a Ficção”. Em sua porção não ficcional, encontramos uma abordagem documental talking head, de muita conversa, no qual o próprio Angeli, caracterizado em forma de boneco, fala de processos diversos. Ele desabafa sobre o ato de criar, de viver, de se reinventar, de usar óculos escuros e de tornar isso tudo uma coisa só. Do outro, num registo de distopia, vemos o que se passa na cabeça do artista gráfico quando ele parece querer se livrar das suas crias do passado, transformando num deserto árido o que era uma São Paulo quadrinizada – e universal. É um enredo sobre desapego e sobre uma perseverança quase romântica, que encontra equilíbrio na montagem de Eva Randolph. Enredo esse no qual Cuspe (na voz do ator Milhem Cortaz), de escopeta na mão, empenha-se em exterminar seu criador, enfrentando uma horda de mini Elton Johns.

Ao confessar não ter problemas em matar personagens, uns minutos antes de afirmar não ter problema em jogar bens materiais fora, Angeli – o cronista existencial por trás de tirinhas de HQ que amadureceram o humor nas Américas – instiga no espectador uma sensação de que a facilidade dele em se libertar de amarras pode ser um sintoma do modo como o Brasil vem lidando com as falências morais do seu povo.

Na entrevista a seguir, Cabral – um paulista de Santo André crescido no extremo da zona leste de São Paulo, consagrado anteriormente por curtas como “Tempestade”, aclamado em Sundance, em 2011 – fala da importância das BDs de Angeli para sua formação.

O que o Angeli representou para a educação afetiva e humorística da sua geração? A que lugar de humor ele levou o Brasil?

Angeli e toda a geração dos quadradinhos paulistanos dos anos 1970-80, capitaneado por Toninho Mendes, no selo da Editora Circo, tiveram um papel de formação para uma geração de jovens que saíam da ditadura e se deparavam com uma produção nacional que falava diretamente sobre os nossos anseios. Angeli coloca nas tiras o universo quotidiano dos grandes centros urbanos, é o punk, mas também é a Rê Bordosa, com sua ressaca eterna. Ele escrotiza o político de direita, mas também não deixa escapar os esquerdistas Meia Oito e Nanico.

De que maneira as suas recentes vitórias no exterior, a partir de Annecy, podem redimensionar a carreira comercial de “Bob Cuspe – Nós Não Gostamos De Gente”? Tem planos de streaming pela frente? Estreias no exterior já foram agendadas?

Os prémios internacionais trouxeram um olhar especial para o filme. Não é de hoje que o Brasil chama a atenção pela sua produção animada nos grandes festivais internacionais. No caso do Bob Cuspe, recebemos alguns convites importantes para exibições em Los Angeles e qualificação para o ASIFA- Hollywood e Annie Awards. Estamos negociando com uma distribuição americana e, no Brasil, temos o Canal Brasil e a Rede Telecine como próximas janelas para o filme.

Qual é a dimensão da equipa que você teve para um projeto como esse? Quantos técnicos trabalharam consigo? De quanto orçamento dispôs? E o quanto esses números (de verba, de colegas de trabalho) representam o atual cenário da animação hoje no Brasil?

O filme levou cerca de cinco anos para ser produzido, três deles em estúdio de filmagem, com uma equipa de aproximadamente 40 pessoas fixas. Ao todo, o filme envolveu cerca de 200 profissionais e o orçamento foi de 5 milhões de reais (790 ml euros). Atualmente, o cenário da animação sofre as mesmas consequências da produção audiovisual e da cultura no Brasil. Pela natureza da animação com o tempo prolongado em sua produção, muitos desses trabalhos foram iniciados há mais de três anos.

De que maneira um punk da periferia como Bob Cuspe ainda é representativo da realidade política do Brasil hoje?

Acredito que a periferia, com as suas diferentes posturas punks, no sentido amplo da palavra, ainda é muito representativa, seja através da música ou das artes visuais, como o grafite e o pixo (pichação) nos grandes centros urbanos.

Que novos filmes você tem à vista?

Atualmente estou iniciando a pré-produção de uma nova longa-metragem chamada “Um Pinguim Tupiniquim”; tenho uma série infantil chamada “Gildo”, adaptada dos livros da Silvana Rando; e estou em contratação (no Fundo Setorial do Audiovisual) de uma série com o animador americano Bill Plympton, (referente ao edital) de 2018.

Notícias