Sábado, 18 Maio

Bloodsuckers: uma “comédia vampírica marxista”

Um dos filmes mais curiosos e divertidos exibidos na Berlinale este ano foi “Bloodsuckers”, o qual se autodescreve como “uma comédia vampírica marxista”.

Assinado pelo alemão Julian Radlmaier, responsável por “Autocrítica de um Cão Burguês”, que passou em Portugal no circuito dos festivais de cinema, o filme de época muito peculiar acompanha um refugiado soviético – ator caído em desgraça por ter interpretado Trotsky num filme de Sergei Eisenstein – que se apaixona por uma vampira burguesa excêntrica que passa o verão na praia com o seu servo desajeitado.

Sátira política onde prima o humor, “Bloodsuckers” tem alguns momentos que nos levam às lágrimas, brincando significativamente na direção de arte e falando simultaneamente do Cinema e da sua história e relação com o Estalinismo,

Conversámos com Julian Radlmaier, o realizador desta obra recentemente premiada no Festival de Cinema de Moscovo com o Prémio Especial do Júri.

Já no seu filme anterior mostrou que gosta de falar de temas sérios com humor e rodeia-se de personagens difíceis de categorizar. Às vezes essas personagens agem como os Monty Phyton, mas outras vezes são realmente sérias e levam-nos à reflexão. O que o atrai para este género de filmes políticos com um lado tão forte de comédia? 

É difícil explicar, mas existem certas coisas no mundo que me revoltam. Talvez porque venha de uma família de diferentes origens sociais. A minha mãe vinha do proletariado e o meu pai da burguesia; a família era dona de uma fábrica. Houve um choque desses mundos em mim.

Todos podemos ver no Mundo que vivemos que há existe algo de errado e a única coisa que posso fazer é pegar no meu humilde  ponto de vista das coisas e reagir a ele. Lês coisas, observas e tentas transformar os teus pensamentos em histórias, situações e imagens. Muito do filme circula em torno destas personagens burguesas, que nascem do capitalismo, do choque de classes, cercadas de grandes injustiças. Estas são as questões que faço sempre a mim mesmo. Porque sou realizador e não trabalhador numa fábrica? A verdade é que existe uma distribuição injusta de posicionamentos na nossa sociedade.

Julian Radlmaier

Mas além desse discurso político, o Cinema tem também um papel essencial na sua narrativa, com um filme dentro do filme e referência aberta ao Eisenstein. É alguém meticuloso no estudo histórico, não apenas dos textos que cita (como os de Karl Marx), mas também na História do Cinema?

Tenho um grande passado de cinéfilo, bem antes de ter surgido a questão da política, mas se vejo um filme de Bresson não quero religiosamente saber da sua interpretação sobre o seu próprio filme. Sinto um desejo pelas formas na criação de imagens.

Há duas confluências nos meus filmes, mas não existem como um sistema. São baseadas na curiosidade e interesse e não uma espécie de estratégia no sentido estético, histórico ou político. Colecciono impulsos e tento criar algo novo a partir disso.

No seu “Autocrítica de um Cão Burguês” dizia que o neoliberalismo capitalista é-nos apresentado como a única saída, o único rumo, mas simultaneamente também mandou farpas ao comunismo, afirmando que “podíamos ter comunismo, mas sem comunistas”. Estas mensagens é algo que vai querer manter como marca na sua carreira? Pergunto isto porque sendo uma sátira política, não é totalmente direta e por isso pode alienar as pessoas dos problemas reais discutidos, dando a ideia de apenas uma farsa.

Não sei onde irei no futuro, mas posso dizer que amanhã não vou trabalhar em algo militante. A verdade é que não consegues evitar o “ser político”, pois mostras pessoas, interações sociais. Não abordar isso de forma política é em si uma afirmação política, por isso é inevitável. Se fizeres um filme sobre burgueses a falarem dos seus problemas pessoais, há um lado político nisso. Não sei como escapar, mas não podemos escapar. Por isso prefiro falar do tema abertamente. O cinema precisa realmente destes temas políticos e para mim os melhores filmes desse género são aqueles que não abordam as coisas de uma forma muito direta.

Sim, por exemplo, quando vi o seu filme veio-me à cabeça o “Ma Loute”, do Bruno Dumont, ou até o “A Morte de Estaline”, do Armando Iannucci, num arranjo dedicado para ver no grande ecrã. Não imagino, por exemplo, ver este filme no mercado de streaming. A forma como filma, para o Cinema e Grande Ecrã, é também uma afirmação política do seu lado?

Totalmente. Vejo o cinema como um espaço social em que estamos sozinhos, mas rodeados de todo o tipo de pessoas, partilhando todos uma experiência. A sala de cinema é um espaço político muito importante e seria uma tragédia se elas desaparecessem. Os filmes que fiz foram feitos dentro da tradição cinematográfica e construídos para as salas. 

Não vejo séries, não tenho qualquer interesse nelas. São imagens em movimento, mas não me interessam. O que quero é esta experiência, o ir a uma sala.

Vai um pouco na linha do que o Martin Scorsese disse recentemente sobre “conteúdos”, que tanto podem ser um filme, como vídeos do Youtube. Mudando de assunto, muitos críticos depois da “Autocrítica de um Cão Burguês” caracterizaram-no com o início de uma “Nova Vaga”, alguns deles comparando-o a Godard. Sente isso, esta suposta “Nova Vaga”?

Toda a indústria do cinema é baseada na criação de “novas vagas”, coisa com a qual não compactuo.  Aquilo a que me conecto, não sei se é uma “Nova Vaga”, está ligado a dois outros filmes presentes nesta Berlinale. Um é realizado pelo Aleksandre Koberidze, o nosso ator principal, e está na competição principal: “What Do We See When We Look at the Sky?”. Nós estudamos juntos na escola de cinema. O outro filme é também de outro colega meu na escola, o Ramon Zürcher, que apresenta (na Encounters) o  “The Girl and the Spider”. 

Talvez aqui esteja uma nova geração do cinema alemão. Para dizer a verdade, não tenho muita ligação ao cinema feito na Alemanha. A minha mãe é francesa e o meu pai meio-suíço. Nasci na cultura alemã de cinema e sou apoiado por fundos germânicos, mas a geração que estava na minha escola de cinema é muito internacional. Não sei se esta “Nova Vaga” que falam está conetada a isto. Na Alemanha, o ambiente de produção sempre foi hostil para algo que tem uma abordagem mais livre. Talvez esta nova geração seja uma afirmação que vai contra isso. Mas sinceramente, não vejo nisso que falou um “movimento”.

Tem algum novo projeto?

Sim. Filmámos algumas sequências deste filme na Rússia e estou muito tentado a filmar lá novamente. Estou a preparar um “road movie” que se passa nos anos 1980, na URSS, sobre pessoas que conduzem um barco pelo rio Volga abaixo. Será um filme romântico, mas claro, também político. Mas essencialmente um romance.

Notícias