Sábado, 18 Maio

Fred Baillif, o antigo basquetebolista que conseguiu os 3 pontos na Berlinale com “La Mif”

Antigo jogador de basquetebol, internacional pela Suíça, transformado em trabalhador social e posteriormente em cineasta, Fred Baillif tentou e conseguiu os três pontos na Berlinale com “La Mif”, o drama de uma casa de acolhimento de jovens onde um caso de abuso de sexual entre os “residentes” provoca um desencadear de situações que saem das portas da instituição.

Vencedor da barra paralela Generations 14Plus, na Berlinale, Baillif falou ao C7nema sobre o seu filme, rodado inteiramente com não-atores, e que serve de crítica ao atual sistema, onde o pessoal especialista destacado está apenas autorizado a “proteger” os jovens, sem que seja possível criar com eles verdadeiras relações humanas. “Estes miúdos precisam de amor, antes de tudo, mas a instituição proíbe-nos de dar esse amor”, disse-nos, acrescentando que nos tempos que correm “o trabalho social tornou-se muito complexo”.

Tendo em conta a sua experiência na área, como foi escrever e criar este “La Mif“?

Foi uma longa aventura. Inicialmente tinha interesse em falar do tema dos abusos sexuais. Esse foi o ponto de partida. Trabalhei com jovens vítimas de abusos e este era um assunto muito sensível para elas. Recolhi muita informação e investiguei a questão, encontrando histórias pessoais muito fortes.

Procurei então criar um elo de ligação entre esse tema dos abusos e o espaço social onde trabalhei como educador quando era mais novo. Foi assim que o filme começou…

Anaïs Uldry, Amandine Golay, Amélie Tonsi, Kassia Da Costa, Sara Tulu, Joyce Esther Ndayisenga, Charlie Areddy

E como foi trabalhar com não-atores? Especialmente a Claudia Grob, que interpreta a  Lora? Ela revelou uma qualidade impressionante…

Sinceramente, também fiquei muito surpreso com o resultado final. É uma pessoa que conheço há muitos anos, tendo mesmo trabalhado com ela nos meus tempos de educador. Foi a primeira pessoa que contactei para este projeto. Mas todas as personagens do filme, na sua base, remetem a pessoas que encontrei no meu percurso na área social e com quem falei sobre a sua vida privada e profissional. Criamos juntos uma história fictícia a partir de experiências pessoais. Mas friso: o que vemos no filme é ficção. 

A atriz que faz de Lora deu-me muitas informações sobre o sistema de proteção de menores. Fui eu que escrevi a sua história e ela mesmo não sabia nada da sua personagem quando começamos a filmar. Todos os dias eu dava-lhe os textos e informações que teria de entregar em palco. Eu queria que as coisas soassem autênticas e assim era a melhor forma. Ela aceitou.

No que diz respeito às miúdas, pedi-lhes que escrevessem as suas próprias histórias. Era uma forma de apropriarem-se das personagens e de surpreenderem-me. A única que estava escrita por mim era a história de Precieuse (Ndayisenga), pois estava diretamente ligada à de Lora. As outras tiveram a liberdade de inventar um drama em torno da razão porque foram parar naquele espaço. Coube-me a mim depois na montagem ligar tudo isto.

É interessante falar da montagem, porque organiza as coisas quase como um “Rashomon” em que temos várias perspetivas do incidente que levou a polícia à casa de acolhimento. A sua estética – num registo de ficção – também é particularmente ligada ao vérité, ao “real”. Porquê essa opção?

Acima de tudo desenvolvi, através de formação e de muita pesquisa, um método de direção de atores para não profissionais. O meu primeiro filme, “Tapis Rouge”, foi feito sem dinheiro mas já com jovens. Foi aí que descobri uma vocação, talvez um talento (“cabe ao público dizer isso“), uma paixão de dirigir jovens no cinema que não são atores. É preciso desenvolver uma verdadeira relação de confiança com os miúdos e trabalhei com eles durante dois anos. Ia à casa de acolhimento regularmente, tomávamos refeições juntos com a minha família naquele espaço, participamos em ações lúdicas ligadas a teatro para criar essa ligação, essa confiança. Era como se fossemos uma família. Fizemos muito isso antes das filmagens e divertimos-nos muito. Mas este é um método muito preciso e exigente. Um método de “acting”. 

E por exemplo, no caso da jovem Kassia Da Costa, que faz o papel da “Novinha”, há nela uma agressividade e violência muito impactante. Essa violência vem de ti ou dela? Foi a história que ela decidiu contar?

Veio do trabalho que fizemos antes de filmar. Quando conheci os jovens pedi-lhes para me dizerem o que era mais difícil para eles. E quando fizemos os ateliers de improvisação, procurei as emoções de cada um. A Kassia já exprimia essa violência e dei-lhe exercícios, pretextos para exprimir-se assim. Uma vez que a ligação de confiança entre nós foi criada, procurei nela essas reações, até as físicas. Mas isso só foi conseguido porque criamos aquela relação de confiança. 

Melody Despont Marin, Kassia Da Costa

Olhando para o teu currículo, vemos que começaste no basquetball, depois passaste para o trabalho social e agora estás no cinema. És alguém que precisa de fazer várias coisas diferentes na vida? (risos)

Já falei muito disso com o meu terapeuta (risos), de querer fazer tudo. Na verdade, acho que existe uma verdadeira relação entre tudo isso. Penso que a maior escola da vida é o basquetebol. Eu era Base quando jogava e era o líder que tinha a missão de fazer com que os outros jogadores melhorassem o seu jogo. Fiz isso toda a minha vida. Comecei no basquetebol aos 6 anos e segui até à profissionalização. Sempre tentei fazer que os outros ao meu redor melhorassem. E agora faço o mesmo com os atores. É exatamente a mesma coisa, o mesmo processo. 

A Lora do seu filme é também assim, mesmo com aquele trauma que carrega… 

Sim, ela é assim. Mas ao mesmo tempo está num sistema que não permite que sejas mais humano. Foi também por isso que parei de trabalhar na área social, nas instituições. Há coisas que chocam com a minha personalidade. Vou dar-te um exemplo, que é importante pois é a mensagem que queria transmitir no filme: quando trabalhas no meio das instituições, estamos lá para proteger os jovens. É essa a mensagem que as instituições dão a toda a hora e que mostro no filme. Quando somos educadores, também dizemos isso a toda a hora. Mas nessa proteção tem de haver uma distância com esses jovens. Para mim isso era impossível.

O que quis mostrar no filme é que não é possível estar lá apenas para os proteger. Estes miúdos precisam de amor, antes de tudo, mas a instituição proíbe-nos de dar esse amor. O trabalho social tornou-se muito complexo.

Nós notamos que há muitas regras, leis e burocracias…

Exatamente, coisas que emperram as relações humanas. Que refreiam essas relações. No meu trabalho, hoje em dia, não ponho barreiras nessa relação humana. Tornamos-nos realmente numa família a fazer este filme.

E vais continuar a fazer este género de trabalhos no futuro? Tens um novo projeto?

Sim, tenho um projeto em torno do basquetebol que é baseado na história verdadeira de uma jogadora norte-americana. Ela teve de travar a sua carreira porque usava o véu islâmico e a FIBA interditou-a de jogar na Europa. Ela iniciou uma batalha para mudar as regras internacionais do basquetebol. É uma história verdadeira e estou a preparar uma ficção em torno disso. Estou prestes a começar a escrita.   

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