Domingo, 5 Maio

“O Último Banho” chega aos cinemas. Entrevista a David Bonneville

É um dos bons filmes portugueses que este ano vamos poder ver nas nossas salas já a partir de quinta-feira (1 julho). “O Último Banho“, de David Bonneville, esteve em competição este ano ao Prémio Ingmar Bergman no Festival de Gotemburgo, na Suécia, isto depois de passagens por Tóquio e São Paulo com boa recepção.

No filme seguimos uma freira (Anabela Moreira) obrigada a regressar à terra em que cresceu para tomar conta do sobrinho (Martim Canavarro).

Com uma longa carreira no universo das curtas-metragens, onde destacamos “L’arc-en-ciel” (2009) e “Cigano” (2013), David Bonneville mostrou neste seu “O Último Banho” uma enorme maturidade no domínio da câmara, na criação de uma atmosfera de permanente tensão, e no trabalho com os atores, onde ainda encontramos Margarida Moreira, Ângelo Torres e Miguel Guilherme.

Um caso sério de bom cinema nacional. Fiquem com a nossa entrevista ao realizador durante a passagem do filme por Gotemburgo.

Depois de estrear em Tóquio e passar pela Mostra de São Paulo, o filme chega agora a Gotemburgo onde concorre ao Prémio Ingmar Bergman. Como tem visto a carreira internacional do filme e qual o significado para si – se é que existe – de concorrer a um prémio que carrega o nome de Bergman?

2020 foi um ano muito complexo para estrear filmes seja em sala seja em festivais. Vários festivais de gama alta reduziram drasticamente as suas programações, outros tantos foram adiados, alguns ganharam novas formas – sem filmes a concurso – e outros optaram mesmo por cancelar o evento por completo e ainda não se lhes conhece futuro. Neste panorama, ser um dos 32 filmes da Tokyo Premiere (entre um total de 1,356 candidaturas) é um privilégio enorme. O festival de Tóquio foi híbrido, com projeções em sala e também com acesso a visionamento online. Eu apenas vivi o festival pelo instagram. Tenho imensa pena de não ter podido ir apresentar o filme presencialmente, tal como aconteceu com o Mostra de São Paulo, esse sim exclusivamente digital.

Estrear em Gotemburgo é magnífico – reduziram a programação dos habituais 400 filmes para apenas 70 – o que torna a seleção ainda mais especial. Bergman é o grande mestre do cinema mundial, parece-me que é universalmente aceite. Os seus filmes são enigmáticos, sedutores e psicologicamente densos. Identifico-me com esse universo e mostro e analiso os seus filmes nas aulas que leciono em Inglaterra e em Portugal. Fazer parte da competição Ingmar Bergman não é apenas uma honra, mas um reconhecimento valioso.

Em 2008 esteve na Berlinale Talents. Na página do evento, ainda está uma frase sua:  “My films reflect my personality and this is why the themes are recurrent – they reflect my worries, my fears and desires”. Tendo em conta esta frase, já com 13 anos, como nasceu este “O Último Banho” e o que lhe interessou na escolha de uma ruralidade e interioridade em extinção – como setting do filme – para contar esta história?

Sim, os filmes que escrevo e realizo são sempre muito pessoais, mesmo que sejam depois extrapolações, fantasias, metáforas, o ponto de partida é sempre algo que me diz respeito intimamente – seja uma ideia, sentimento, imagem ou conceito. A ideia de “O Último Banho” partiu de uma imensa solidão que senti, foi logo a seguir a ter completado o mestrado em argumento. Estava a morar em Londres e não tinha um emprego fixo, morava a 40 minutos do centro, numa desolada zona do Leste da cidade (agora super gentrificada) e vi-me pela primeira vez completamente só durante a semana. Partilhava casa com um espanhol, mas ele só chegava a casa de noite e fazia a sua vida independente, sem grandes conversas. Os meus amigos também estavam todos a trabalhar e moravam longe (tipo a uma hora e meia com direito a 3 transbordos de transporte público). E foi dessa solidão, e quem sabe talvez alguma saudade, que surgiram memórias dessa paisagem desolada dos sinuosos vales durienses.

David Bonneville nas filmagens de “O Último Banho”

Já tem uma longa carreira nas curtas-metragens, desde 2000, mas esta é a sua primeira obra a solo como realizador. Qual o maior desafio que encontrou nesta sua passagem do universo das curtas-metragens para as longas-metragens e quão difícil é um cineasta encontrar espaço em Portugal para fazer longas?

Todas as minhas obras anteriores foram realizadas a solo, salvo apenas uma curta-metragem correalizada em âmbito universitário. Estou habituado a realizar sozinho. Para realizar é preciso ter coragem, a coragem de decidir. Para decidir é necessário saber o que se quer dizer a cada instante, nem que seja um saber intuitivo. Para ter intuição tem de se ter experiência e critério. Está tudo interligado se quisermos esmiuçar e analisar a questão.

Quanto ao maior desafio, na elaboração e preparação do projeto é conseguir um guião sólido para depois não resvalar na rodagem nem na montagem. A fase seguinte pode ser ainda mais desafiante porque dependemos do gosto dos outros para que possamos ter financiamento. Num país como Portugal que tem tantos talentos e tão poucos subsídios, existe uma clivagem e secura abundante que deixa muitos cineastas durante décadas sem poder filmar.

Anabela Moreira e e Margarida Moreira

O papel da Anabela Moreira (Josefina) está recheado de pequenos enigmas que tentam aplicar algumas camadas por decifrar desta mulher. Por exemplo, qual o significado que queria que espectador absorvesse da cena inicial onde encontra um preservativo numa cama (e esconde), do momento em que deita-se nua da cintura para baixo na primeira noite na sua antiga casa, além das sucessivas fotos do corpo e banhos dados ao sobrinho? E já agora, ligado a isso ou não, explique a escolha do uso do cilício na perna dela como ato de punição.

Josefina é uma personagem intrigante e fascinante de facto, e a Anabela Moreira deu-lhe corpo e espírito de forma absolutamente notável. O cilício que Josefina usa sobre a pele da perna é uma forma de mortificação, de crença na libertação por meio do sacrifício. É uma autodisciplina que se torna especialmente urgente no regresso ao Douro no momento complexo em que se encontra a sós com o sobrinho de 15 anos de idade na Casa Antunes (casa antiga de família e o local principal da ação).

O significado das restantes ações que descreve na pergunta devem ser descobertas por cada pessoa que veja o filme; trabalho os meus filmes para dar esse espaço de leitura, prazer e construção aos espectadores. A Josefina tem uma vida interior muito forte no momento em que decorre a ação do filme. Ela tem também um passado e sentimentos que florescem e que desconhecemos por completo porque ela não nos diz. Mas porque haveria ela de nos dizer? O modo que encontrei de sugerir o que lhe vai na alma foi usando ações, gestos, que nós espectadores, como mosquinhas na Casa Antunes, vemos a desdobrarem-se na mais completa e solitária intimidade da personagem. Assistimos às ações e decisões que ela toma a cada instante. Isso define o que ela foi, e quem ela é, no aqui e no agora. E é dessa presença e dessas nuances que vive o cinema que eu amo e que quero perpetuar. Não menosprezo outras formas de contar histórias, há séries e filmes fabulosos (para televisão e não só) que adotam uma gramática e semântica totalmente diferentes, eu próprio já realizei filmes com linguagens diversas, tudo depende do contexto e do tipo de filme que se procura fazer a cada momento. Neste filme em específico, a Josefina deve ser entendida e decifrada pelas suas ações e reações.

Como preparou o papel da Josefina com a Anabela Moreira. Como foi essa colaboração, tendo em conta que em todos os momentos – desde o trailer (vi nos Encontros do Cinema Português), à sinopse, passando pelo filme em si – existe uma tensão constante de uma eventual relação incestuosa pronta a eclodir?

A preparação para o papel de Josefina com a Anabela foi feito inicialmente através de perguntas e conversas intensas e posteriormente um breve período de ensaios e improvisações. Tive dias de preparação com o ator e com a atriz, em conjunto e em separado mas só entreguei o guião à Anabela numa fase mais adiantada. Queria ter a certeza de que não haveria julgamentos precoces sobre as personagens – tanto a respeito da Josefina como do personagem Alexandre. Foi um processo muito gradual até sentir confiança para enviar o argumento integral à Anabela e podermos falar da história real e concretamente. Pouco tempo depois da Anabela ter lido o argumento, foi “estagiar”, ou seja, passar uns dias num convento, e conhecer o funcionamento, rituais e vivenciar em detalhe a vida das freiras. No seu regresso reiniciámos uma análise mais detalhada e profunda sobre a sua personagem e fechámos decisões de composição. Depois do argumento e das personagens solidamente desenhadas a Anabela e eu entrámos noutro processo, o de des/reconstrução do argumento – todo um procedimento que se pontuava tanto por momentos divertidos, brilhantes e cúmplices como de frustrações, medos e zangas. Foi um processo muito duro, angustiante e cheio de cepticismo, mas que teve um balanço positivo no final. Toda esta exigência fez destilar o papel da protagonista e consequentemente a narrativa no seu aspeto global.

O Martim Canavarro, modelo com carreira internacional, é provavelmente uma antítese do jovem Alexandre que vemos em cena. Como foi ele escolhido para o papel e o que lhe disse para absorver e entrar naquela personagem tão fechada num mundo tão pequeno, onde uma ida ao Porto é uma verdadeira festa?

Encontrei o perfil do Martim na base de dados da agência True Sparkle. O Martim não tinha experiência nem formação alguma em representação. Também não era modelo internacional na altura. No entanto, encarnava o ideal físico que tinha imaginado para o Alexandre, e foi quem eu quis ver primeiro no casting. Só que contracenou com uma atriz que muito admiro – no casting testávamos atrizes para o papel de tia e atores para o papel de sobrinho em simultâneo. Eu fiquei mais atento à representação da atriz e o Martim, que reagia subtilmente ao texto da tia, passou despercebido. Foi só quando regressei a casa, já em Londres, que vi as gravações que fez o assistente de casting, e reparei no talento do Martim. Uma das tomas eram só sobre as reações dele e fiquei absolutamente estupefacto com o seu naturalismo e muito surpreendido com a sua capacidade de tomar direções. Era sem sombra de dúvida o Alexandre que eu tinha imaginado, não só fisicamente, mas psicologicamente também. No seguinte casting, em que juntei os dois, comprovei a redonda alquimia entre o Martim e a Anabela, e o filme já discorria perante os meus olhos na sala de ensaios.

Martim Canavarro

Mais adiante, ao explorar a personagem com o Martim, percebi que ele tinha muitas afinidades com o Alexandre, como a sua experiência de ter vivido no campo e a paixão por jogar futebol. Claro que as diferenças do contexto familiar e culturais eram muito vincadas, mas moldámos a personagem em ensaios. A energia natural do ator, de facto, em nada se assemelha à da personagem que encarna, mas bastava-me articular meia palavra para o Martim se transformar em Alexandre.

O David foi um dos realizadores do projeto “Contágio”, que chegou agora para distribuição online. Como se ligou a esse projeto e o que ele representa para si?

O ano passado estava ainda a trabalhar na finalização de “O Último Banho” quando recebo um e-mail da parte das produtoras portuguesas, com a proposta de enviar vídeos feitos durante o confinamento. E por acaso tinha acabado de captar imagens com o meu telemóvel e enviei-lhes. Ainda não vi o resultado.

Já tem algum novo projeto em desenvolvimento? Se sim, pode nos falar dele?

Estou com dois projetos de longa-metragem em mãos. “A Hóspede Síria”, que está em estado mais avançado e conta a história de uma estudante Síria ao abrigo da Global Platform for Syrian Students, em Portugal, que tem por base testemunhos reais. O outro projeto de longa-metragem chama-se “Neblina” e a ação desenrola-se no norte do país.

[entrevista originalmente publicada em fevereiro de 2021]

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