Sábado, 4 Maio

Josep: a arte no combate ao fascismo como exercício de imaginação e memória

Depois de passar no MyFrenchFilmFestival, "Josep" pode ser visto na MONSTRA | Festival de Animação de Lisboa

Dono de um traço exuberante, cronista do exílio, namorado de Frida Kahlo e guardião da batalha de toda uma geração de espanhóis abalada pela brutalidade do franquismo, Josep Bartolí i Guiu, artista gráfico nascido em Barcelona, em 1910, e falecido em Nova York, a 3 de dezembro de 1995, tem mobilizado (postumamente) a internet em buscas atrás dos seus desenhos por conta do sucesso de uma longa-metragem de animação baseada nos seus relatos de juventude e de maturidade.

Exibido em certames como a Mostra de São Paulo, no final de outubro, a produção foi distinguida nos festivais de Atenas (com o prémio de melhor argumento) e Valladolid (com o troféu de melhor realização). Desde então, o filme vem atraindo olhares para o legado de Bartolí.

Na Amazon encontra-se um dos seus múltiplos trabalhos à venda: “La retirada: éxodo y exilio de los republicanos españoles”, feito em parceria com o seu sobrinho, Georges. Foi a partir da luta de Georges para preservar a penosa história do seu tio que Aurélien Froment, conhecido apenas como Aurel, descobriu a trajetória artística desse militante da resistência que resolveu transformar em ficção. Aurel é autor da ótima BD “Clandestino” (Glénat, 2014), mas é um estreante como realizador de longas-metragens.

Na trama, Aurel viaja no tempo até fevereiro de 1939. Na ocasião, os espanhóis republicanos fogem da ditadura de Franco, rumo a França. O governo francês acena com uma hipótese da ajuda, que acaba por se materializar na forma de um campo de concentração, confinando os refugiados. No local, eles mal tinham acesso a alimentos, água ou qualquer possibilidade de higiene. Num desses campos, separados por arame farpado, Bartolí solta a sua imaginação, com o material que encontra, e traduz o que vê em ilustrações. Desenha o assustador mundo à sua volta e o regime ditatorial espanhol. Anos depois, já do lado de fora das cercas francesas, ele encontra o prazer nos braços de Frida Kahlo, pintora mexicana com quem terá lições de estética e desejo.

Apesar da sua natureza de biopic, a animação sobre Josep Bartolí parece ir além dos factos reais acerca da vida deste artista gráfico e propõe uma reflexão mais universal, calcada na resiliência. O que os feitos dele abrem de precedente para uma discussão sobre a arte de resistir?  

É um filme sobre exílio e é um filme sobre o fascínio da memória, no sentido de que uma recordação amorosa leva aquele desenhista a uma libertação do horror ao seu redor e ao desejo de seguir em frente. A principal reflexão que tento abrir é discutir como a arte pode ajudar alguém a sobreviver. Cheguei à história de Bartolì a partir do livro que o sobrinho dele, Georges, fez a partir dos campos de concentração na França, usando os desenhos dele como ilustração. Ali foi um primeiro contanto, que me despertou estranheza, não só diante da singularidade do traço dele, mas pela dor dos seus relatos.  

Onde a Guerra Civil espanhola e o franquismo entram como bússolas históricas?

No filme, esses episódios são apenas um motor de arranque, pois o que mais me atraiu na história dele não foi o horror da partida, dos conflitos de Espanha, e, sim, o terror que ele vai encontrar em França, num espaço onde havia uma promessa de salvação. Através dos campos de concentração, Bartolí viveu não apenas uma deceção, como uma experiência desumana, que alimentou a sua arte em registos de dor, acendendo nele a fagulha da solidariedade. Uma fagulha que incutiu nos movimentos de esquerda em que participou.

E de que maneira ele afeta o trabalho de Frida Kahlo?

É mais fácil apontar como ela o afeta, uma vez que ela abre para ele uma diversidade de cores que antes inexistiam no seu desenho. Frida leva o México a Bartolí, faz ele entender não só os conflitos latino-americanos como a diversidade cultural das Américas.

Como foi a colaboração com Sergi López, que faz a voz de Bartolí?

O ponto mais importante foi a compreensão que ele teve da dimensão afetiva de Josep Bartolí e a habilidade de usar a voz para representá-lo, a partir dessa dimensão de artista preocupado com os desarranjos da política.

Como é que o desenho dele mudou a sua própria conceção das artes gráficas?

Não sei se houve uma mudança, mas houve certamente um encantamento, pois descobri a partir dele uma forma de conjugar arte com o combate ao fascismo e um exercício exuberante da imaginação e da memória, a partir de vivências pessoais usadas como modelo para o desenho.

(entrevista originalmente publicado em janeiro)

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