Domingo, 19 Maio

Sinai Sganzerla, um extrato de transgressão na memória da ousadia

Fruto de uma história de amor, de criação e de transgressão (de fazer qualquer cinéfilo suspirar) entre uma atriz pautada pela invenção (a baiana Helena Ignez) e um realizador fiel ao credo do risco (Rogério Sganzerla, morto em 2004), a responsável por “Extratos” tem motivos de sobra para encarar a seleção de seu filme pela disputa de prémios do 48º Festival de Gramado como um gesto de reverência à coragem e à ousadia.

Sinai Sganzerla é hoje uma das documentaristas cujo prestígio mais cresce entre os críticos da América Latina por sua habilidade de fazer da memória um objeto poeticamente maleável. Filha de Rogério e Helena, o casal que presenteou o mundo com “O Bandido da Luz Vermelha” (1968), e irmã da aclamada atriz Djin Sganzerla (de “Ralé”), Sinai já vinha de um histórico respeitado como produtora (com o premiado “Luz nas Trevas” no currículo) quando despontou para direção com “O Desmonte do Monte” (2018), sobre a destruição do Morro do Castelo, no Rio de Janeiro, por ditas “reformas arquitectónicas”.

Passou para o registo biográfico, na sequência, com “A Mulher da Luz Própria” (2019), falando da própria mãe. Em “Extratos”, com o qual vai concorrer aos troféus (de 18 a 26 de setembro, com transmissão pelo Canal Brasil), ela costura imagens registadas de 1970 até 1972, nas cidades do Rio Janeiro, Salvador, Londres, Marraquexe e Rabat, além de uma região do deserto do Saara. Tais imagens foram filmadas por Helena e Sganzerla no exílio, nos anos de chumbo da ditadura militar brasileira. “O filme é também sobre a esperança, pois algo afável é possível mesmo quando há indicações do contrário”, diz a sinopse enviada a Gramado por Sinai, que conversa aqui com o C7nema sobre a sua obra. Uma obra que está atualmente em tributo na grade no Recine – Festival Internacional de Cinema de Arquivo, que ocorre atualmente na internet.

O seu cinema tem uma delicada linha narrativa para construção da montagem, sempre muito dialética. Como você pensa a linha narrativa de suas montagens em filmes como “O Desmonte do Monte”? Existe um eixo comum aos filmes na edição?


Busco sempre um casamento entre o áudio e a imagem que, de alguma forma, já ocorre no momento em que me deparo com o material de arquivo que  julgo mais pertinente para usar nos filmes, além das imagens e áudios captados especificamente para eles. Durante a edição, busquei ter um paralelo direto com o desmonte atual do Brasil, que já estava em processo.  O roteiro estava com a narração definida antes de começar a montagem, assim como algumas músicas já estavam determinadas.  O filme tinha na sua estrutura que o motivo principal da destruição do Morro do Castelo de São Sebastião (marco fundamental da cidade do Rio  de Janeiro)  ocorreu por causa do processo de colonização do Brasil. Os elementos da ganância e  destruição, de certa forma, se repetem.  Por isso que esse filme é histórico e atual.  O meu filme ‘A Mulher da Luz Própria’ tem uma estrutura de roteiro muito parecida com  do ‘Desmonte do Monte’: muito cuidado ao apresentar  e desenvolver a personagem protagonista: a atriz e diretora Helena Ignez, minha mãe. Conhecia amplamente o acervo do que ela atuou e o que dirigiu, como também sua trajetória pessoal. Na curta ‘Extratos’, exclusivamente realizada com material de arquivo (no caso, película 16mm, fotografada pelo meu pai, Rogério Sganzerla, grande parte no exílio) conta além da trajetória de um jovem casal em viagem pelo mundo, em busca de um futuro melhor. Ele também aborda os sonhos e as dificuldades  que envolvem a trajetória de uma vida, os extratos de uma vida.


O que esperar de “Extratos”, que te leva a competir em Gramado? Que relação aquelas cidades (re)visitadas travam com o cinema dos seus pais?


Extratos’ tem sido muito exibido em importante festivais.  O Festival de Gramado é um evento pelo qual tenho muito carinho.  Estive presencialmente em Gramado em momentos diferentes da minha vida. É um dos mais antigos festivais do Brasil. Espero que ‘Extratos’ também desperte uma reação emocional, como tenho visto em outros festivais onde o filme foi exibido. Estou muito feliz com as seleções desses três filmes que dirigi em importante festivais de cinema. ‘O Desmonte do Monte’ acabou de ser exibido em Madrid e vai para o Benim; ‘A Mulher da Luz Própria’ foi exibido em importantes festivais de cinema no Brasil, além de Havana, de Istambul, de outras seis cidades da Turquia, entre outros festivais. Estou também no SANFIC, o Santiago Festival Internacional De Cine, no Chile, dentro da mostra ‘Directoras en Foco’, com mais cinco cineastas internacionais que tiveram seus filmes exibidos  em  importante festivais  de cinema.  Sou a única brasileira. Isso é uma resposta que o nosso cinema dá. O cinema brasileiro é de excelência e dialoga com diversas culturas. Também recebo com muita gratidão e felicidade uma linda homenagem, com mais duas importantes diretoras (Emília Silveira e Susanna Lira) no Recine, que é um festival de cinema extraordinário.  Por conta da pandemia os festival de cinema estão sendo realizados online.

Qual é a realidade de produção que vocês tem para realizar os seus filmes no Brasil de hoje?

É um momento no qual o que estava oculto está vindo à tona, a sujeira está emergindo.  A censura às artes e educação agora é feita com o pretexto falso  de que é preciso ‘enxugar a máquina’. Existe um projeto de perseguição à classe artística e o audiovisual é um setor particularmente alvejado porque concentra muitos interesses e é extremamente importante economicamente. O meu próximo filme se chama ‘Praia da Saudade’. É também sobre a memória e a destruição. Foi adiado por conta da pandemia .  

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