Sábado, 18 Maio

Oliver Laxe: “Como criador, mais que autor, sou um servidor.”

"O que arde" estreia dia 16 de julho

Novembro de 2019. Quando nos encontramos com Oliver Laxe, “O Que Arde” tinha acabado de ganhar, uns dias antes, quatro prémios na Argentina, no prestigiado Festival de Cinema de Mar Del Plata. “Foi muito importante para nós, pois muitos galegos migraram para a Argentina”, disse-nos o realizador nascido em França de origem galega, numa entrevista durante o LEFFEST.

Laxe espalhou simpatia e carisma nos 30 minutos que tivemos ao seu lado, insistindo para que falássemos em português. Foi nesta conversa que tivemos acesso a mais detalhes sobre o seu “O Que Arde”, filme sobre o regresso de Amador (interpretado por Amador Arias), um ex-condenado por incêndio à sua pequena localidade. A forma como ele se relaciona com o espaço e com as gentes locais, que tanto o acolhem, como condenam e têm medo, é um dos focos desta obra repleta de camadas por destrinçar. E ficamos também a saber sobre os seus próximos projetos, sejam eles de agricultura biológica, sejam eles filmes em jeito “road trip psicadélica” para terras entre Marrocos e a Mauritânia, com passagem por Portugal.

São importantes para ti estes prémios e o que a crítica diz sobre os teus filmes, Oliver?

Sim, são, porque os prémios legitimam o teu Cinema. É uma profissão muito excessiva e no fundo, nós cineastas procuramos amor. Tu também. Todos procuramos amor à nossa maneira. É muito bonito vencer prémios, mas a minha maior distinção é que o filme está a ser um fenómeno social e cultural.

Como criador, mais que autor, sou um servidor. O meu trabalho é de estrutura, é como um espelho. Já temos 70 mil espectadores em Espanha. Isto numa película legendada! Está a ser um êxito. É incrível. Esse é o maior prémio, fazer um cinema para um público purista, mas sem me conformar com aquelas elites autistas. Tentar levar a caravana a outros públicos.

E em Portugal pode suceder o mesmo, até porque por cá temos também muitos dramas com incêndios. Eu tenho raízes no interior e tive uma reação muito emocional a ver o filme, pois durante a infância vi muita gente com o dedo acusatório como as que vemos com o Amador. Mas antes disso, queria perguntar uma coisa. Fizeste dois filmes em Marrocos e agora deste o teu foco à Galiza. Porquê essa mudança?

[risos] Bem, o estranho foi eu ter ido a Marrocos. Sou galego e queria voltar a casa e investir a minha energia na Galiza. Sabes, quando fui para Marrocos senti que havia uma continuidade de valores que tinha na Galiza, os valores dos meus avós, que viviam no campo. Mas sou galego e tenho de trabalhar na minha casa. Estou com projetos de agricultura biológica, outros pedagógicos. Creio que tenho de servir agora na Galiza. Mas por outro lado, estou a preparar um filme francês.

Amador Arias e Benedicta Sanchez em “O Que Arde”

Mas como começou este “O Que Arde”? Conheceste o Amador e a partir daí como foi?

Muitas vezes os cineastas quando analisam porque fazem os filmes, é muito normal que se equivoquem.

É um mistério porque fazemos os filmes, por isso vou falar de várias coisas que aconteceram em paralelo. Primeiro, o desejo de voltar a casa, de fazer Cinema diretamente na minha essência, concretamente neste vale [que vemos no filme] onde nasceu a minha mãe. É um sítio que tira o melhor que há em mim, que me inspira, que vive em mim. Depois, esteticamente trabalho sobre aquilo que chamo a soberana submissão, em que vivendo no campo és livre mas não o és realmente. Aceitar que as coisas são assim, num campo determinista. Sou um determinista.

Depois há ainda o lume, que me interessa muito, mas que não sei se me atrai ou se me apavora. Atração porque sem dúvida é algo que me deixa inebriado, como cineasta, mas como cidadão obviamente que o rejeito, até por tudo o que esse lume provoca. Também tenho muito interesse na ruralidade e os valores milenares que se estão a perder nesta modernidade idiota e infantil.

Para além disso, queria acolher e abordar uma figura desprezada pela sociedade, um camponês que neste caso também é um pirómano. Tentei não justificar os seus atos, mas sim reabilitá-lo. Foi um exercício de conseguir fazer com que o espectador criasse uma empatia com ele. Que tivesse a capacidade de o amar, de compreender e de o perdoar. Nunca é fácil um filme sobre a misericórdia, sobre o perdão. Isso interessava-me.

E há bastante ambiguidade na personagem, pois não sabemos se ele é mesmo responsável pelo fogo posto ou não…

A vida é demasiado comprimida, não tenho respostas. Podemos sentir coisas, mas entende-las, não sei. Pessoalmente, gosto muito de todas essas interpretações possíveis. Existem pessoas que acham que ele é culpado, outros acham-no inocente. Há gente que até acha que ele foi preso de maneira injusta. Mas também existem aqueles que tanto lhes faz. Este filme foi feito com a consciência que todos somos culpados e inocentes. 

E eu sou o primeiro culpado. Eu creio no Deus, na religião das cidades. Vivo numa cidade, sou um pirómano, um consumidor, um criminoso nestes tempos. Acabei de chegar aqui hoje a Portugal de avião. Nos tempos que correm, é um ato criminal. Por isso, é o Amador um criminoso ou um inocente? Não sei se estou a responder à tua pergunta [risos], mas acima de tudo gosto de todas essas interpretações possíveis. 

Não gosta de entregar uma resposta concreta…

Não a tenho. A minha intenção era chegar ao final da fita e, independentemente dele ser culpado ou não, que existisse empatia. Não só com ele, mas com todos. Com os seus vizinhos. É importante entender o desespero deles. E a mãe. Entendes todos. 

Benedicta Sanchez

Há um apontamento curioso nas notas de produção em inglês do filme, onde a Galiza é considerada uma “motherland” (Mátria) e não uma “fatherland” (Pátria)…

Sim, nas notas de produção espanholas usamos apenas o termo Pátria, mas creio que a Galiza é mais uma Mátria. A Galiza é muito feminina, muito misteriosa, muito humilde. Assemelha-se mais a Portugal, em relação a Espanha. Creio que Espanha, de quem gosto muito, é muito masculina, tem mais testosterona, quer muito estar na luz. Nós, que somos periféricos, preferimos a sombra. Somos mais ambíguos, mais esotéricos, até mais femininos.

E é mátria no sentido que acolhe todos, precisamente, ama todos [risos]. É como a Benedicta diz ao filho quando ele regressa: “Tens fome?”. Eu faço o mesmo ao espectador. Pergunto: “Queres amor?”. E dou-lhes amor. [risos]

[risos] Sim, é curiosa essa cena, porque o filho esteve detido aquele tempo todo e a primeira coisa que ela pergunta é se ele tem fome… 

Exato, mas sabes, também há gente que interpreta nisso que algo se passou entre eles para ter sido essa a reacção. Há uma tensão, qualquer coisa de “fizeste algo de mau”. Ela não diz mais nada, nem parece feliz com o regresso dele.

Uma questão que tenho também tem a ver com o facto de teres apresentado a Galiza de uma forma muito bela, mas quando filmaste o “Todos vós sodes capitáns” disseste que escolheste o preto e branco porque Marrocos era muito bonito. Mas agora escolheste as cores [risos]….

Estudaste bem [risos] Assim dá gosto responder [risos.] Bem, a Galiza é menos bonita que Marrocos, e digo-o como galego. As cores são menos estimulantes, ainda que existam muitos tons de verde. A escolha da cor está relacionada com o facto de me sentir mais maduro como cineasta, mas no “Todos vós sodes capitáns” queria provocar o choque entre o branco, o preto e a cor.  Não sei se te lembras, mas também temos imagens de cor no final.

Sim, os meninos na árvore...

NoO que arde queria mostrar o choque das estações. Do inverno, do verão. A questão é que apanhamos um verão que choveu muito, então não há assim tanto choque de clima, na textura.

Mas o clima da Galiza também contribuiu para o mistério. Aquela neblina…

Sim, o ser humano dissolve-se na imagem, no campo.

Há duas imagens que considero soberbas e muito fortes no filme. A primeira é a destruição inicial dos eucaliptos e a outra é do cavalo no meio do incêndio. Como é que foi feita essa cena?

É um filme industrial, tens um plano de rodagem, tens de cumprir tempos e cada dia fazer uma sequência. Por isso é muito difícil estar com a cana de pesca à espera [improvisar]. Eu gosto de me posicionar entre o caçador que conhece a presa e o pescador que fica a espera se morde algo. Ainda para mais num filme com não-atores, onde às vezes estávamos quatro horas a filmar a lua. 

Eu falei com muitas associações de proteção animal para essa sequência. “Se tiverem um cavalo ferido, avisem“. Uma dessas associações tinha um cavalo com uma doença crónica e acolhemos o animal para filmar essa sequência. Filmamos no rescaldo de um incêndio, com fumo artificial e maquilharmos o cavalo. Uma cena de completa ficção, mas próximo, muito perto do real. Essa era a sequência-chave no guião. Queríamos transmitir, veicular toda a dor de um incêndio através de um animal ferido. E nessa cena, cortamos do cavalo ferido para o Amador [também ele ferido].

Mas é um melodrama seco….

Sim, porque há toda uma contenção emocional que vai passando pelas estações e dilatando com o calor. Chega o lume e explodem as emoções…

E como trabalhas com os atores, ou antes, com os não-atores?

Com muita paciência [risos] Bem, primeiro há que escolhê-los bem…

Não és um realizador colonialista como no  “Todos vós sodes capitáns”? [risos]

[risos] Sim, sou, da mesma maneira, mas com muito amor. [risos]

Não, escuto-os muito, ensaiamos bastante com leituras do guião. São pessoas sem experiência. Há que confiar neles, criar uma familiaridade. O Amador Arias é alguém muito misterioso, com um silêncio que o preenche. Muito fechado. Da mesma maneira que respeitei [e usei] os nomes verdadeiros deles, também os ouvia muito. Eles lêem o guião, apropriam-se dele e metem muitas palavras nele.

No caso da Benedicta Sanchez tivemos que baixar muito a sua energia. Ela é muito faladora, muito impressionante, super interessante, mas claro, atraia muita atenção. Para o filme isso era negativo, pois podia ser interpretada como uma mãe castradora. Não queríamos que as pessoas pensassem que o Amador era assim por causa da mãe. Não queríamos fazer uma analise psicológica. Queríamos que o espectador encontrasse ligações, mas não uma resposta – ainda por cima – pseudo-psicológica.

As filmagens de “O Que Arde”

E o trabalho com os bombeiros, como foi?

Foi bastante bonito. Tivemos de treinar para os exames físicos e teóricos. É gente muito nobre, nem nos queriam cobrar nada. Foram incríveis. Trabalhar perto deles, foi muito duro. Muitas vezes nem tinham onde mudar a roupa.

E agora voltando atrás. Tens um novo filme em França?

Sim, mas neste momento estou com um projeto de agricultura biológica e com elementos pedagógicos, como disse. Espero não filmar antes de 2022. Não tenho pressa nenhuma. Gosto de ter um certo equilíbrio.

Mas já tens uma ideia do que o filme vai ser?

Sim,  o filme será uma road trip psicadélica. É um filme grande. Será uma mistura de “Mad Max“, “Easy Rider” e um pouco de”Stalker“. Faremos em França. É sobre duas personagens que procuram uma rave na fronteira entre Marrocos e a Mauritânia. O filme começa numa rave e às penso que podíamos começar o filme em Portugal. Ou França, Espanha ou Portugal. Não sei. Vamos ver.

Mas vais regressar a Marrocos [risos]…

Sim. Perder-nos mais uma vez [risos].

E o Shakib Ben Omar – figura dos dois primeiros filmes do realizador – vai lá estar?

Não. Infelizmente, não. Mas tenho de fazer um filme com ele. Estes últimos projetos não me pedem o Shakib. Ele merece um filme dele. Tenho vontade fazer uma comédia em Tânger, um filme de zombies com ele em Tânger [risos]. Sabes, o Shakib vive comigo. Passa metade do ano comigo na Galiza. 

Já que falaste há pouco na modernidade estúpida, vamos falar um pouco de cinema e streaming….

Sou contra [essas plataformas], parecem-me predadores. Infelizmente, somos [os cinemas] animais em perigo de extinção e para mim os guardas-florestais têm de ser os estados. Não que me fie muito nos estados, mas confio mais num estado que numa empresa. Que ainda por cima nem paga os impostos que devia.

Mas a pergunta-chave é: “estão a ser melhores os filmes dessas plataformas?” Não. Não são melhores. Há um fenómeno junto dos meus companheiros cineastas que é o “segura aí no copo” que vou fazer um filme e já volto. Os filmes têm que doer. O processo criativo tem de provocar dor, de custar. A mim parece-me que isso são caminhos fáceis que seguem…

No outro dia falei com um realizador que me disse que antigamente tínhamos cinéfilos, mas que agora temos os “cinéfagos”, que se alimentam do entretenimento que chega de todo o lado….

Parece-me que é ainda pior. O que estas plataformas fazem é desenhar produtos de consumo que excitem, que procurem a excitação continua. São como o açúcar. É uma pura excitação vazia, de onde não retiras nada.  

A Lucrecia Martel diz mesmo que hoje em dia o entretenimento é visto como o fim, como a derradeira finalidade

Sim. Vamos ver, creio que temos de nos entreter. É normal. Mas o problema é que só nos entretemos, é tudo entretenimento. Não há qualquer busca espiritual por exemplo como numa obra de arte. Estamos numa fase de decadência. Já não há espectadores [de cinema]. Aqueles entre os 15 e 35 anos estão todos em casa a masturbar-se com séries.

O meu filme vai ser distribuído pela Alambique em Portugal e aquilo que eles me falaram da distribuição de cinema no país é apocalíptico. Em Espanha é igual. Em todo o mundo igual.

Sim, e no cinema toda a gente quer ver os filmes da Disney, da Marvel…

Eu estou a traçar um futuro fúnebre, mas no final das contas estou bem. Como o Amador ou a Benedicta, o mundo pode cair que eles estão bem. Mas não vou enganar-me a mim mesmo. Vou continuar a fazer no que acredito. Não tenho medo de morrer, tenho medo de enganar, de perder os meus valores, de perder a minha dignidade. 

E por isso mesmo tentas criar um equilíbrio na vida, neste caso entre a agricultura biológica e os filmes?

Sim, Há muitas maneiras de servires. A arte é como um cajado que te ajuda a caminhar num período da tua vida. Quando já estás mais maduro, já não usas o cajado e apoias-te na parede. Claro que podes pontualmente andar com o cajado novamente, mas… Para mim o Cinema é uma ferramenta. Não é um Deus. Não é um fim.

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