Quarta-feira, 8 Maio

Cláudia Varejão: “as salas de cinema, mais do que nunca, precisam de nós todos”

Cláudia Varejão havia prometido sereias, e à sua maneira entregou-nos através um retrato antropológico das Ama-sans, uma comunidade milenar de mulheres pescadoras no Japão, hoje em vias de desaparecer pelo desuso da sua atividade.

Passados 4 anos, a realizadora regressa num projeto mais ambicioso que a mera documentação; uma busca pela cerne do afeto derradeiro conduzido sob o signo de Amor Fati (significa ‘amor ao destino‘). Numa pesquisa de dois anos, na sua terceira longa-metragem, a cineasta procurou histórias, casos, gestos e olhares que possam ser induzidos num retrato sobre a existência, amamos aquilo que iremos certo dia perder, assim como os estão para ‘nascer’.

Em entrevista ao C7nema, Varejão referiu e apontou a natureza do seu projeto e colocou em destaque ‘Amor Fati’ como o inicio dos tempos que aí seguem. Uma realidade pós-COVID19 e o futuro incerto do cinema português independente.

Segunda as suas notas de intenção, procurou por mais de dois anos “histórias de amores inabaláveis que expressassem amor à primeira vista”. A minha questão prende-se a um filme concebido e idealizado por vias da montagem. Como chegou até lá? E já agora, o que procurava ao certo nesta panóplia de histórias? Quais os requisitos?

O início das ideias são lugares incertos. Não posso definir, com rigor, quando terá começado a pesquisa para este filme, pois na verdade penso nele desde criança. Ou melhor, observo os encontros entre as pessoas com muita curiosidade desde que me conheço. E nessa atenção lembro-me de pensar, ainda pequena, que as pessoas que viviam em casal pareciam ter rostos e gestos semelhantes.

Foi deste pensamento que, em nada é original, pois muitos de nós reparamos nesta particularidade, que nasceu a proposta para o filme. Mas esse foi só um pretexto. Porque o filme anda à volta de um tema mais vasto e misterioso, que é o Amor. Diria que, nesse sentido, o filme gera-se a partir de uma curiosidade. Não de uma questão. Porque eu não fui à procura de respostas. Procurei, sim, percorrer um caminho durante um espaço de tempo que seria povoado por encontros, curiosos, sim, mas sobretudo humanos e amorosos.

E queria também tecer um retrato do nosso país a partir destes encontros. Quem somos nós no momento presente? Quais as inúmeras expressões de amor que podemos encontrar à nossa volta? É um filme sobre a absoluta diversidade humana, que é na sua génese tão livre e afetiva. Depois o caminho fez-se caminhando, tanto na rodagem como na montagem. Um passo levou a outro e por aí fora. Viveu muito da imprevisibilidade do real. E creio que no filme se sente isso.

Novamente na montagem, é mais curioso encontrar uma dicotomia saliente entre vida e morte. No caso da última, senti que com o amor/afeto não termina com a morte da “outra metade”, apenas a transforma em dor.

É bonito referir que essa dicotomia, ou esse encontro das metades, não desaparece com a morte. É certo também para mim. Mas eu não creio que se dê apenas lugar à dor quando uma das partes desaparece. A ausência reforça, aos meus olhos, a presença. Ou seja, quando no filme assistimos a uma morte de um dos elementos desse laço uno, sentimos, mais do que nunca, de que era ali que ele pertencia, àquela outra metade. E sentimos dor, sim, pela saudade e pelo lugar vazio. Como se no vazio momentâneo, a metade sobrevivente perdesse o sentido ou a própria motivação de estar vivo. Mas por outro lado, numa ideia mais abrangente do filme, podemos entender esta perda como uma peça fulcral para entender a própria narrativa que o filme tece – ou se quisermos, o sentido (ou falta dele) das nossas vidas.

A morte desta personagem aconteceu quando eu já estava na reta final da rodagem. Foi um momento muito triste porque eu crio, na intimidade dos meus filmes, fortes laços afetivos com as pessoas que filmo. E no momento em que recebi a notícia da morte, não tendo muito tempo para racionalizar, num impulso optei por incorporar este acontecimento no filme. Podia não o ter feito. Mas em diálogo com a família senti que havia espaço para esse passo e que, juntos, seríamos capazes de o fazer, com respeito e enaltecendo o amor entre aquelas duas pessoas. Foi um momento muito importante na rodagem do filme, onde me questionei, inevitavelmente, sobre a natureza do meu cinema e os meus próprios desejos e limites enquanto realizadora. Este é o filme que mais me ensinou, sobre o ofício e sobre a vida.

Acerca da estreia exclusivamente online da obra, tendo em conta estes tempos de pandemia, que benefícios/prejuízos trará, não só a performance do filme, como ao futuro dos festivais de cinema num mundo pós-COVID 19?

É arriscado assumir um discurso firme neste momento em que todos recebemos novos dados a cada instante sobre as medidas que afetam o sector do cinema. O que posso dizer, no instante presente, e que vale o que vale, é que senti que era meu dever enquanto realizadora e profissional do cinema não cancelar a estreia anunciada no Visions du Réel, por respeito e por solidariedade com o festival, mas também com todo um sector que se vê parado e sem perspetiva de retorno. Desejo que esta estreia desperte alguma esperança de que nos podemos encaixar noutros moldes de trabalho (em nada ideais, mas necessários no momento) e que nos estimule a pensar (e repensar) sobre o nosso frágil trabalho e dependência direta com as dinâmicas sociais. O streaming há muito que foi entrando no mercado de distribuição e, no meu ponto de vista, temos de o regularizar de forma a não tornar-se um inimigo mas antes um aliado. Parece-me, por isso, esta uma boa oportunidade para estudarmos o assunto.

Agora, para mim, é insubstituível a experiência de ver um filme em sala assim como partilhá-lo com outras pessoas num espaço físico criado para essa sagração. É para essa meta que trabalho, passo a passo, em todas as decisões que tomo ao longo do longo processo de realização de um filme. E vou lutar sempre pela primazia do cinema em sala. Até porque as salas de cinema, mais do que nunca, precisam de nós todos, sem exceção. Temos o dever de as proteger das consequências devastadoras que já estão a sofrer, criando, desde logo, políticas que as ajudem a voltar ao seu quotidiano (que já era pautado por um tão grande esforço de sobrevivência).

O Ministério da Cultura (não só o da tutela atual como de todos os governos passados) é de uma negligência assustadora nesse sentido. Permitiram o fecho gradual das salas de cinema, tantas delas com um valor patrimonial e cultural inegável, e foram cúmplices da desvalorização do cinema em sala. E a sociedade civil é igualmente responsável. Quando, passo a passo, voltarmos a caminhar lá fora, temos obrigação de dar prioridade às salas de cinema, pois o seu funcionamento alimenta todo o ciclo do sector do cinema. O cinema é uma arte relacional em todas as frentes. Não podemos pensar em voltar a filmar, sem pensar em como os filmes vão depois ser vistos. O momento presente tem de despertar em cada um de nós, seja no cinema ou em qualquer outro assunto da nossa vida, um pensamento macro. Parece-me que ficou bastante claro como dependemos uns dos outros.

Novamente frisando os próximos tempos, a produção portuguesa e a sua “indústria” conseguirão adaptar-se a essas novas “normalidades”?

A normalidade não existe. É um conceito frágil que se sustenta numa série de ideias pré-definidas. E quando se tira o tapete, diz-se, fica-se sem chão. É preciso construir novas referências. E nisso o ser humano é brilhante, sabe adaptar-se às mais adversas situações. Nós não temos indústria, ou seja, não temos uma máquina cinematográfica que gera dinheiro. Mas, à nossa escala, temos, sim, um pequeno sistema de funcionamento, com as suas lógicas internas e que dá trabalho a milhares de pessoas.

Vamos precisar de muito esforço e de muita paciência de todos os envolvidos, desde o sector da realização até à distribuição dos filmes, para voltar a olear a máquina. Mas é sobretudo onde e como são mostrados os filmes que queremos fazer, seja nas salas de cinema como os próprios festivais, que devemos centrar a nossa atenção e reforço de trabalho. E devemos exigir envolvimento e investimento da parte da tutela.

Podemos contar com estreia em sala de Amor Fati no nosso país?

Estamos a trabalhar para isso, com grande entusiasmo, e seguramente acontecerá assim que se reúnam as condições necessárias para o público regressar às salas de cinema. Mas estamos a fazê-lo numa dependência inevitável com as medidas que vão sendo tomadas no país. A seu tempo chegaremos às salas, sim, é essa a nossa meta.

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