Sábado, 18 Maio

“As lésbicas têm sido sacrificadas no cinema”: entrevista a Céline Sciamma

“Retrato de uma rapariga em chamas” é um dos grandes filmes do ano

Depois de três filmes que enquadram numa trilogia da “maioridade” (Naissance des pieuvres, 2007; Maria-Rapaz, 2011; e Bando de Raparigas, 2014), a francesa Céline Sciamma regressou cinco anos depois com Retrato de uma rapariga em chamas, filme sensação que não só tem encontrado sucesso junto da crítica, como junto do público, com mais de um milhão de espectadores em todo o mundo.

Nesta belíssima obra acompanhamos a chegada de uma artista (Noémie Merlant) a uma ilha da Bretanha no século XVIII, onde irá pintar o retrato de uma jovem (Adèle Haenel) que se vai casar, sem que ela se aperceba disso. Entre as duas nasce um relacionamento ímpar, sempre sobre a lente de uma cineasta que nos revela a sua “resistência” no processo de escrita para evitar cair no “olhar” convencional deste tipo de relações.

Quis mostrar a sensualidade do consentimento e não mostrar o beijo roubado”, disse-nos Céline em entrevista em janeiro, uma conversa onde inevitavelmente não se falou apenas da sua obra, que bem cedo conquistou o Festival de Cannes, mas do próprio conceito de “musa”, que ela despreza, ou de como “as lésbicas têm sido sacrificadas no cinema“.

Pelo caminho, ficamos a saber que Sciamma sente-se uma verdadeira ativista no cinema e que – para ela – no seu país predomina ainda uma “indústria aburguesada e privilegiada” que crê que não existe o “male gaze” (olhar no masculino), mas sim um “olhar neutro” em oposição à “expressão feminina“.

Como nasceu a ideia para este filme?

Foi certamente um encontro de vários desejos que tinha e que estavam ligados entre si. Queria fazer um filme sobre o amor, o desejo, o recriar as causas do se apaixonar, e a paciência inerente isso. Queria também fazer algo dedicado à memória de uma paixão e da própria política de uma história de amor. Simultaneamente, também ambicionava falar sobre mulheres artistas e fugir da dinâmica da história de amadurecimento. Eram muitos os elementos que queria abordar. Durante muito tempo fugi da criação do enredo e estudei esses elementos, às vezes simplesmente vendo imagens. Depois, sim, criei a história, respeitando totalmente esses elementos e desejos que considerava essenciais. Foi um processo longo.

E nesse processo mostra-nos uma forma diferente de encararmos o termo de “musa”, que normalmente é muito associado à figura que “inspira” o autor. Foi difícil alterar essa forma de ver as coisas?

Quis trazer uma nova dinâmica de poder para o grande ecrã, mas não inventando. Eu própria sou uma artista e vivo rodeada de atrizes, que vejo como modelos numa forma de colaboração permanente. Tentei fugir de forma convencional como isso é representado.

Não acredito que as “musas existam” e acredito que essa foi a maneira de muitas mulheres serem notadas no meio dessa adoração aos artistas. Por exemplo, a Dora Maar, “é a musa” de Picasso, aparece em muitos dos seus trabalhos, mas foi uma das surrealistas mais brilhantes, uma pioneira e uma das mais dotadas representantes desse movimento artístico. Este ano em França houve uma grande exposição do seu trabalho, mas foi a primeira vez que isso aconteceu [e que foi reconhecida individualmente].

Neste momento estamos a tentar trazer a igualdade e a horizontalidade ao discurso de amor, o que é possível se não existir a dominação de um género. Mas igualmente fazemos isso no diálogo criativo, que transformamos em algo de maior correlação [e não de submissão] (…) O meu processo de escrita foi acima de tudo um processo de resistência. Nós, os escritores, sabemos como contar uma história e eu podia fazê-lo facilmente [como sempre se faz]. Muita gente que leu inicialmente o guião pediu-me mais conflito e mais tensão, por exemplo do lado da mãe. Eu resisti a isso e procurei outra maneira de atingir a essa tensão, sem necessidade de um conflito como esse.

E os temas abordados neste Retrato de Uma Mulher em Chamas são algo que acredita serem importantes de debater neste instante? Crê que vai continuar neste registo no futuro, naquilo que podemos chamar de “female gaze” [olhar no feminino]?

Sim, sem dúvida. Vou continuar neste processo que acredito ser intelectual, pois acho que é uma maneira de ser ativista no cinema….

Então considera-se realmente uma ativista?

Sim, considero-me um ativista no cinema. É curioso [risos]… cheguei agora dos EUA e lá apresentaram-me sempre como ativista e realizadora [risos]. Mas aqui [em França], as pessoas questionam: “ativista e realizadora??”. [risos] O que é bom, pois em França adoramos não separar o homem do artista [dito com ironia].

Sim, vou continuar a procurar novas narrativas. Por exemplo, estou a fugir da violência, como a que tinha no meu filme anterior. [Essa fuga] foi algo que me fez sentir mesmo bem, mas claro, é um risco, pois pensas sempre se as coisas vão funcionar. Por exemplo, em termos de erotismo, quis mostrar a sensualidade do consentimento, e não mostrar “o beijo roubado”. Por exemplo, aqui em França os críticos disseram imensas coisas sobre o filme, definindo-o como não erótico, que lhe faltava carnalidade, etc.

Então crê que o seu trabalho é melhor aceite nos EUA que em França, por exemplo?

Sim. Quer dizer, o meu trabalho também é bem recebido aqui, pois é o meu país, mas a cultura dos críticos de cinema…(…) não acho que seja um problema deles contra mim, mas está ligada à forma como veem os filmes em geral. Não me sinto de todo uma mártir, ou algo parecido, mas sabe, [para eles] em França não há “male gaze” [olhar masculino]. Existe o “olhar neutro” e a “expressão feminina” [risos].

Eles não são politizados, pois temos uma indústria aburguesada e privilegiada. Posso sempre usar a metáfora da música, em que construímos um tema aqui, mas dançam-no melhor noutro lado.

Voltando ao filme, como foi o processo de escolha das protagonistas? Escreveu o guião com alguém em mente?

Tinha a Adèle Haenel na mente e procurava alguém com quem pudesse iniciar uma nova colaboração – a Adèle eu conhecia muito bem. Queria também ter um duo icónico e não pegar em duas atrizes famosas. Especialmente porque são dois papéis lésbicos. Queria algo com que as pessoas se pudessem identificar, como por exemplo no “Mulholland Drive”, ou até no “Titanic” [em que DiCaprio ainda não era muito conhecido]. Queria que as pessoas acreditassem neste casal, que é maravilhoso e simultaneamente refrescante. Com a entrada na Noémie isso ficou mais evidente.

Falei com a Noémie ontem e ela disse-me que a sua participação neste filme mudou a sua maneira de ver muitas coisas. Como se sente quando um ator diz algo como isto? É certamente algo bom de ouvir?

Sim, sem dúvida. O cinema são ideias, ficções. Quando as pessoas dizem que os filmes mudam as suas vidas, temos de entender realmente o que isso quer dizer. Na minha perspetiva, quando as pessoas dizem isso, é porque colocam sentimentos, ideias [em cima da mesa] e sentem-nas ao vê-las [no ecrã]. É a forma como endossam essas mesmas ideias. Por isso, é tão importante o cinema ser uma arte democrática. É assim que mudas, através desse impacto emocional. E isso está totalmente ligado a uma ideia. Depois disso, desse endossar, podes prosseguir com a ideia.

Teve algum tipo de consultadoria para estudar a época retratada?

Fiz muita pesquisa e escrevi o guião. Depois passei esse guião a uma socióloga das artes, ao invés de uma historiadora. Queria, acima de tudo, que a personagem fosse precisa em termos sociológicos.

Depois trouxe especialistas para todas as coisas do dia a dia, como por exemplo, como as mulheres lidavam com o período, como se embebedavam, como nadavam, abortavam, etc. Coisas do dia a dia da época, a sua intimidade. Havia pessoas para tudo, do tipo de óculos ao que colocavam na cabeça. Felizmente para mim, sou mulher, por isso podia reconhecer muitas dessas questões de intimidade e falar delas também através da minha experiência.

E quanto aos homens, que não estão em cena, embora a sua presença seja sempre omnipresente… Como foi criar essa tensão, esse sentido de fatalidade, pois sabemos como as coisas terminam…

Bem, o facto do filme ser todo ele um grande flashback, define logo as expetativas. O que faz logo com que não estejamos a jogar com essas expetativas. Curiosamente, acho que isso trouxe mais liberdade, pois não estás obcecado como a história vai acabar, podendo assim refletir sobre o final da relação.

Mas essencialmente, essa tensão que fala, advém do acreditar neste processo passo a passo do apaixonar-se, do resistir ao prazer do presente. O processo de apaixonar-se é realmente um processo de paciência. Tentamos nos agarrar a isso e respeitar cada uma das cenas, não as deixar seduzirem-se cedo demais. (…) tentamos ser o mais precisos e pacientes possível

Falando de histórias lésbicas, nós temos inúmeros filmes sobre a matéria, como por exemplo o A Vida de Adèle. Acha que no universo desses filmes e em geral, existe o tal “male gaze” e que tentou neste filme escapar a esse olhar padronizado que aparece no cinema?

Sim, sem dúvida. As lésbicas têm sido realmente sacrificadas no cinema. Não aparecem como mulheres verdadeiras, pois fogem das convenções. (…) Basta pensar que a pesquisa mais popular em pornografia é pelo termo “lésbicas” e esses vídeos mostram coisas que não se podem definir como sexo lésbico. No caso do A Vida de Adéle, não estou completamente documentada sobre ele, no que diz respeito a como é o sexo lésbico, mas existe no cinema em geral uma representação muito convencional de como é o sexo lésbico que não é de todo exato.

Acha que muitas vezes essas cenas são feitas para excitar o público heterosexual?

Sim, claro, mas nem precisas pensar em quem queres excitar. Existe uma convenção na forma como essas cenas sexuais são representadas. É uma forma fácil de excitar as pessoas, mas na realidade não representam realmente como é o sexo lésbico. Ou uma relação lésbica.

Mas repare, em relação ao A Vida de Adéle, a banda-desenhada que inspira o filme foi escrita por uma lésbica, por isso há certamente coisas nas representação da relação que ela certamente sentia-se conectada. Por isso, não vamos dizer que todo o filme é impreciso. Mas no que diz respeito à sexualidade, há claramente sexo lésbico “heterosexualizado”.

E depois deste filme, já tem um novo projeto na mente? Algo que está a trabalhar?

Neste momento [em janeiro] estou ainda a dar muitas entrevistas, na tournée mundial da fita, que termina daqui a um mês. Tenho algo na cabeça mas preciso…

…relaxar um pouco, não? [risos]

Exatamente [risos]. Já sonho acordada com isso [risos]. Eu fumo muito, por isso penso nisso pelo menos quinze vezes por dia. [risos]

Mas sim, quero avançar com algo, nao quero esperar cinco anos como aconteceu da última vez. E não vou aceitar pelo caminho mais trabalhos de argumentista, pois essa foi também uma razão porque demorei cinco anos a chegar até este filme.

E pensa, por exemplo, em trabalhar para uma plataforma de streaming?

A Netflix quis comprar o filme, mas eu decidi escolher um distribuidor independente nos EUA. Trabalharia num projeto, sim, ou por exemplo se não conseguisse trabalhar no meu país. Sei lá, imagine que as coisas mudavam e eu não pudesse fazer mais filmes para cinema, que a extrema direita governasse França.

A coisa boa da Netflix, e talvez seja apenas porque viram nisso uma oportunidade, embora ache que existe também uma vontade política, é que eles têm feito realmente muito pela representatividade e diversidade. O mercado normal de cinema não faz isso, e por tal, agem de forma menos racista e sexista no seu negócio. Por isso, e para mim, parabéns a eles por isso. Mas enquanto tiver e puder fazer projetos para cinema, farei. Mas se tiver projetos para streaming, também os farei.

Falando na diversidade, espera que no próximo Festival de Cannes, e depois de assinado o protocolo com a 50/50, existam mais filmes de realizadoras no evento?

Não éramos tolas e claro que não pedimos 50/50 na seleção oficial. Pedimos sim para o conselho de direção do festival e para o comité de seleção. Ter 50/50 implica criar quotas (…) Espero encontrar mais realizadoras este ano na competição, pois no ano passado éramos só quatro.

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