Sábado, 18 Maio

Fomos ao “Bar Luva Dourada” e sobrevivemos. Entrevista a Fatih Akin

“Tornei-me realizador por causa do cinema de terror”, disse Fatih Akin na Berlinale, em 2019, quando apresentou o seu The Golden Glove (O Bar Luva Dourada)

Pedindo emprestado o nome de um bar em Hamburgo, na Alemanha, que entre 1970 e 1975 tornou-se o local privilegiado para um serial killer escolher as suas presas, o mais recente filme do realizador de obras como Head On – A Esposa Turca ou Uma Mulher Não Chora segue de perto os eventos em torno de tenebroso psicopata que aterrorizou a cidade alemã: Fritz Honka.

Depois de passar pelo MOTELX, O Bar Luva Dourada chega finalmente às salas comerciais  e foi por essa razão que estivemos à conversa com Akin. Uma conversa curiosa sobre a produção de um filme de horror nos limites, que inevitavelmente não fugiu a comparações com o último trabalho de Lars Von Trier [A Casa de Jack]. Pelo caminho, falamos ainda com o cineasta sobre Barack Obama, Donald Trump e até de Martin Scorsese e o seu famoso “feudo” com a Marvel. Uma conversa onde também descobrimos que o seu próximo projeto é uma série com Diane Kruger como Marlene Dietrich.

Depois de conquistar o Golden Globe, veio o The Golden Glove[risos]. Certamente era um tipo de filme que não se estaria a espera logo a seguir ao In The Fade (Uma Mulher Não Chora), especialmente nos EUA?

Sim [risos]. Depois do Golden Globe, o Golden Glove [risos]. Bem, eu estive a trabalhar algum tempo num projeto americano que acabou por não se concretizar,. Às vezes é assim.

O Golden Glove era algo que queria muito fazer. Li o livro, gostei bastante e senti-me muito desafiado pelo projeto, como cineasta. Consigo fazer isto? Tenho a técnica, a capacidade de fazer algo assim? Consigo encontrar atores que a audiência realmente acredite para retratar o que está na obra? Tive uma abordagem muito técnica, mas ao mesmo tempo, todo o horror no filme, todo o código moral do pós Segunda Guerra Mundial, foram coisas que foram aparecendo à medida que ia desenvolvendo o projeto. Mas a primeira abordagem foi bastante técnica.


Jonas Dassler como Fritz Honka

Incomodou-o algumas comparações ao projeto de Lars Von Trier, A Casa de Jack?

Na verdade não me chateia muito isso, pois penso que são dois filmes bem diferentes. Creio que essas comparações surgiram porque ambos saíram mais ou menos ao mesmo tempo, no mesmo ano. Ele [Von Trier] tem uma abordagem, filosofia e ideia muito diferente da minha. Sem o julgar, de todo, ele vai mais ao intimo do que descreve. Eu recrio a realidade do caso real, construindo no processo um filme de horror.

Disse algo bastante curioso quando o filme estreou em Berlim. Que gosta dos filmes americanos de terror, mas que não o assustam. Os que o assustam são os austríacos, como os de Ulrich Seidl e Michael Haneke. Esses dois nomes servem como influência para o horror que procurava para o seu filme?

Bem, quando vejo um filme, por exemplo, como o IT, não acho nada assustador. Este tipo de filmes para mim não são assustadores. Sim, têm os “jump scares” mas isso não me assusta. No momento que esses filmes terminam, esqueço-os.

Já o Funny Games (Brincadeiras Perigosas) é uma fita que não esqueço. É algo realmente perturbante. Alguns trabalhos do Gaspar Noé e do Seidl também são assim. São aquele tipo de filmes que vejo uma vez e nunca mais me esqueço deles. Há exemplos americanos, por exemplo, o Henry: A Sombra de Um Assassino (1986), que é muito perturbante.

O que é curioso com esses filmes, que têm estes monstros, é que mesmo assim tens, não sei, uma espécie de empatia com a personagem. Ficas interessado nela. O Angst (1983) é assim, e é austríaco. Estes foram os filmes que tinha na mente quando trabalhava no Bar Luva Dourada.

Mas há uma coisa que tenho de dizer, a imprensa e os especialista de cinema de horror e fantástico nos EUA gostam do meu filme – o filme está a ser exibido nos festivais desses géneros – mas a imprensa liberal democrata mainstream não gosta. O filme também não é para eles.

O Jonas Dassler é fabuloso no filme, como foi o seu trabalho com ele para chegarem ao Fritz Honka?

Era tudo baseado numa personagem real e tentámos analisar o pano de fundo de tudo. A caracterização – os olhos, maquilhagem, etc – e a expressão corporal, isso foi “trabalho de casa” do Jonas. E ele foi muito bem sucedido nisso.

Quanto ao interior da personagem, à sua mente, falamos com muitos psicólogos, médicos psiquiatras. Todos disseram que não havia uma verdadeira explicação para este comportamento. Há algo de errado no cérebro, é uma doença, há algo na mente que não está a funcionar como devia. A parte do cérebro para a empatia está a funcionar mal, ou não existe, ou é muito fraca. Juntamente com o álcool, pode conduzir alguém aquilo que vemos no filme.

Muita gente fica frustrada com esse facto, especialmente os críticos, porque não existe uma explicação. A meu ver, e pegando no Pássaros do Alfred Hitchcock, também não existe explicação para o que os pássaros fazem. Acho que isso é muito mais assustador e perturbante. Foi nesta tradição que fiz o meu filme.


Fatih Akin e Jonas Dassler na Berlinale

E o autor do livro, o Heinz Strunk, esteve envolvido em todo o processo de construção do argumento?

Não, mas viu o filme e gostou bastante.

Li que viu alguns filmes do Rainer Werner Fassbinder para recriar os anos 70. É um cineasta que aprecia?

É alguém que respeito muito. Depois da Segunda Guerra Mundial ele foi o realizador germânico mais poderoso. Até hoje. Ele é muito poderoso, embora isso não signifique que goste de todos os seus filmes, e há bastantes que não aprecio, que acho que os fez de forma apressada. Mas pensando em toda a sua obra, no conjunto, é um cineasta muito impressionante.

Uma das coisas bastante importantes no seu filme é a música, como foi esse trabalho de seleção musical?

Não estava muito familiarizado com a música dos anos 70, dos grandes sucessos germânicos dessa década, que são todos baseados em temas mexicanos, italianos, espanhóis, se calhar também portugueses [risos]. Eles pegavam na música dos outros e escreviam letras em alemão. Isso é todo um mundo e eu não estava muito familiarizado com ele, por isso pesquisamos muito sobre essa época. Ouvia horas e horas de músicas no YouTube. Depois fiz uma lista de músicas, como um best of, que usei no filme. Por isso, conhecia as músicas antes de filmar e usei-as sempre já no set das filmagens.

Alguns realizadores, especialmente depois do #MeToo e #TimesUp, afirmam que algumas vezes entram em mecanismos de autocensura. Por exemplo, no seu filme, há muita violência contra as mulheres. Essa autocensura acompanhou-o? Colocou um “filtro” em si, ou nem por isso e fez o que quis?

Fiz o que tinha de fazer. Se me perguntar se esses movimentos mexeram naquilo que digo no dia a dia e naquilo que faço, sim. Penso sempre no que posso dizer, ou que não posso, o que posso pensar, ou não. Mas num filme que é sobre violência contra as mulheres, que não a celebra, de todo, certas imagens podem chocar e perturbar. E devem mesmo fazer isso. Perturbar-te. Mas se eu parar de fazer um filme sobre violência contra as mulheres, essa violência contra elas não vai acabar no mundo. Não há ligação entre as duas coisas.

Como disse que tem mais cuidado no que fala nos dias de hoje, lembro-me que foi muito crítico da política de George W. Bush. Mas sobre a administração de Donald Trump, não o vejo a falar muito…

Eu digo-lhe algo sobre o Trump. Até certo ponto, o problema é quando tens um político como Obama, que todos pensamos que ele é o melhor, “o salvador”, mas depois vimo-lo a fazer coisas como as que assistimos no filme do Michael Moore (Fahrenheit 9/11), onde no Michigan existia aquele caso de contaminação das águas, e ele finger beber a água para dizer que está tudo bem. Eu prefiro ter um político que não esconde que é um idiota, a um político que finge ser um tipo ótimo e na verdade é um idiota. [risos]

E depois deste filme, qual o seu novo projeto?

Estou a trabalhar numa série limitada em torno da Marlene Dietrich. A Diane Kruger é a protagonista.

Há uns anos, disse também numa entrevista que as pessoas cada vez iam menos ao cinema. Acha que estas plataformas de streaming estão a ajudar os cineastas a fazerem projetos que não conseguiriam fazer de outra maneira ou que elas estão a ajudar a matar o cinema?

Ambas as coisas. Elas matam os cinemas, mas simultaneamente ajudam os cineastas a transmitirem a sua visão. Claro que não fazem isso com todos os realizadores, dúvido, mas pessoas como Scorsese e Cuarón, eles não conseguiriam fazer os seus filmes [O Irlandês; Roma] na antiga estrutura da indústria. Eu agradeço isso, que a Netflix fez, ou o que fizeram com aquele filme do Orsen Welles. Por isso, por um lado é uma grande oportunidade, mas por outro, realmente matam os cinemas.

E essa série que está a fazer é para uma dessas plataformas?

Sim, é, para uma delas. E digo-lhe, perguntei se havia uma maneira de levar isto ao grande ecrã e os parceiros comerciais com quem habitualmente trabalho disseram todos: “Não. Não existe audiência para este género de filmes agora“.

Já que mencionou o Martin Scorsese, posso perguntar-lhe o que acha da afirmação dele sobre os filmes da Marvel?

Ele falou em ‘parques temáticos‘, certo? Sim, eu percebo o que ele disse. Eu vejo esses filmes com o meu filho nos cinemas e …. adormeço. Filmes como o Vingadores. Adormeço. O meu filho e os amigos estão a ver o filme e falam imenso durante a projeção. Por isso nem o veem realmente.

Falam imenso, comparam as personagens e até levam catálogos com imagens dos super-heróis. Mas eu adormeço… Em algumas atrações nos parques de diversão, também adormeço. Isto não acontece em todos os filmes adaptados de bandas-desenhadas. Gostei muito do Cavaleiro das Trevas do Christopher Nolan.

E viu o Joker? Gostou?

Gostei, mas gostei mais do Heath Ledger como Joker. Falo como alguém na audiência. Para mim, O Cavaleiro das Trevas com o Heath Ledger foi o melhor. Mas estes filmes não são “parques temáticos“, como os Vingadores. Existe todo um Universo em torno dos Vingadores, que não percebo.

E não gosto de separar a Marvel da DC. Gosto do Homem-Aranha. [Isto dos Vingadores], quando estão todos juntos, é… confuso.

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