Sábado, 18 Maio

Ainda Temos a Imensidão da Noite: nos acordes dos sintomas do ‘Brasil que temos hoje’

Na sua arrancada pelo circuito de exibição, em busca de bons augúrios para 2020, o cinema brasileiro dá as mãos à música… em especial, àquele tal de ‘roquenrol’… a fim de estabelecer uma crónica geopolítica (e existencial) sobre interseções de mundos, de corações e de acordes dissonantes: Ainda Temos a Imensidão da Noite.

Previsto para estrear neste fim de semana, a longa-metragem marca o regresso do cineasta Gustavo Galvão, realizador de Nove Crônicas para um Coração aos Berros (2012) e do filme de culto Uma Dose Violenta de Qualquer Coisa (2013). O seu olhar aporta referências afetivas raras para a representação de Brasília, coração político do seu país. Protagonizado por músicos, a sua nova longa-metragem é uma espécie de Round Midnight do B-Rock dos anos 2010. É pura vontade (d)e potência: um ensaio existencial sobre geografias, a de Brasília e a de Berlim, sob acordes do rock. Bonito de ver e viver. A trama: cansada de lutar por um lugar ao sol com sua banda de rock, Karen (a ótima Ayla Gresta), a vocalista e trompetista do grupo, decide ir embora do Distrito Federal. Ela vai deixar para trás a realidade brasiliense, abandonando a metrópole que o seu avô, hoje muito adoentado, ajudou a construir. Ela segue os passos do ex-parceiro de banda Artur, que tenta a sorte em Berlim. O convite parte de Martin, amigo alemão com quem os dois fecham um triângulo imprevisível. Em solo alemão, sob um frio rascante, amores, disputas, porres, solfejos vão marcar o desterro de Karen. Na entrevista a seguir, Galvão fala das suas reflexões geográficas.


Ayla Gresta

A percepção de que “Berlim tá virando Orlando” e de que “Brasília tá seca pra c…” estabelece uma simetria (invertida) de estudo geográfico de duas cidades que parecem pólos opostos. De que maneira a concretização de Ainda Temos a Imensidão da Noite permitiu uma imersão nessa instância de transformação geográfica? Que gerúndio é esse em que essas metrópoles vivem?

Desde o começo do projeto, eu sabia que precisava de uma cidade que servisse de espelho, ou de referência, para a cidade central do projeto, que é Brasília. Precisava de um referencial para estabelecer parâmetros palpáveis no estudo que queria fazer sobre Brasília. E esse referencial só podia ser Berlim. As duas cidades passaram por processos muito parecidos. Os paralelos entre elas são impressionantes! Brasília foi construída do zero no mesmo período em que Berlim era reconstruída do zero, nos anos 1950-1960. A História machucou muito as duas cidades: Berlim com a guerra e o muro; Brasília, com o golpe militar e a ditadura que se seguiu. Eram cidades com um estigma. Foi a juventude que tratou de quebrar esses estigmas. A cultura jovem, mais especificamente a música, deu uma nova identidade tanto para Brasília quanto para Berlim. E isso se deu na mesma época, a década de 1980. E aqui acontece uma ruptura significativa: Berlim seguiu a trajetória de reabilitação por meio da arte e orgulha-se do seu papel de vanguarda ainda hoje; já Brasília acomodou-se ao papel de sede do poder e o espírito do funcionalismo impregna (quase) tudo. O rock feito na cidade não é referência sequer para a música brasileira mais. A pergunta que me fiz, por muito tempo, e inspirou o projeto, em 2011, é “porque Brasília pegou esse desvio e abandonou a vocação para a vanguarda?“. Mas as reviravoltas na política brasileira de 2013 para cá redirecionaram a pergunta. O que intriga agora é: “Porque o Brasil pegou esse desvio tão absurdo rumo ao caos?” Brasília nada mais é que o reflexo (ou o sintoma) do país que temos hoje. É interessante destacar que Brasília e Berlim também dividem a herança modernista no traçado urbano. Isso porque foi o modernismo que pautou a construção de uma e a reconstrução da outra cidade. Optamos por locações que estabelecessem um certo diálogo nesse sentido. Mas o que prevalece é o factor humano. Na luta pessoal contra a resignação e o comodismo que se apoderaram de Brasília, a protagonista inspira-se na determinação dos berlinenses em defender o caráter de sua cidade. Karen precisa cruzar o Atlântico para perceber que Brasília carece dessa determinação. Afinal, esta é uma cidade ainda em construção.

Como foi o processo de direção de atores?

Já tinha tido experiências com “não-atores” antes. É sempre uma opção arriscada, mas que tende a trazer resultados surpreendentes. Uma das razões que me levam a fazer cinema é ser surpreendido com o processo. No caso do Ainda Temos a Imensidão da Noite, em que músicos de verdade fazem parte de uma banda criada para o projeto, buscamos uma potência sonora e artística que fosse fiel ao tema do filme – músicos que vivem o drama de não serem ouvidos e não terem nem onde tocar. O problema é que as bandas precisam de anos para desenvolver a potência que eu almejava e nós só tivemos dois meses. Então foram dois meses muito intensos, de muitos ensaios. A convivência entre os músicos na preparação da banda acabou sendo uma excelente estratégia de imersão no universo dramático do filme. Isso tudo ocorreu entre julho e setembro de 2017. Mas a seleção de elenco começou muito antes, em junho de 2015. Foi quando eu conheci e entrevistei aquela que viria a ser nossa protagonista, Ayla Gresta. Foram dois anos trocando ideias e referências. Quando tínhamos três do quatro músicos definidos, em dezembro de 2016, fizemos um [curso] intensivo de atuação para cinema com a preparadora Vanise Carneiro. Por uma semana, começávamos assistindo a um filme. Eu fiz questão de exibir filmes projetados num telão, pois queria que eles vissem as minhas referências em grande escala. Depois, era o momento de discutir esses filmes (de “Estranhos no Paraíso” a “Contra a Parede“); e, só depois disso tudo, é que partíamos para o laboratório em si, com exercícios pensados para dar aos músicos o domínio do corpo em relação à câmera e ao companheiro de cena. Retomamos essa preparação em julho de 2017, já com o quarteto completo, e seguimos até setembro, quando começou a filmagem. Essa etapa começou com uma intensiva preparação vocal com Cristiano Karnas. Vanise reassumiu a preparação em seguida e mergulhamos fundo nas intenções das personagens. Acompanhei tudo de perto. Foi lindo ver os músicos apropriarem-se das personagens, de tal modo que muitas cenas foram reescritas com eles e ganharam mais vigor.

Como foi que o seu “muso”, Marat Descartes, operou para ampliar esse tráfegos de músicos para o plano da construção de uma linha de atuação?

Marat não participou da preparação. Conversamos bastante antes e ele entrou com tudo no personagem. Era delicioso notar os músicos fascinados com a desenvoltura dele no set. Os olhos deles brilhavam! Tenho a certeza que eles assimilaram muito da inteligência cénica do Marat. Pensando bem, ele fez parte da preparação, só que de forma indireta, pois os músicos assistiram a Uma Dose Violenta de Qualquer Coisa e a Mulher do Pai, da Cristiane Oliveira (coautora do roteiro, com Barbie Heusinger e o próprio Gustavo). Eu fazia questão de comentar: “é com esse cara que vocês vão contracenar, ele é um génio!“. Era um estímulo a mais.

Qual é o lugar do rock na sua formação, em Brasília e no mundo?

O rock foi decisivo para Brasília, indicou caminhos para que aquele esboço de cidade se convertesse numa cidade culturalmente relevante e ativa. Dava para sentir isso na rua, da segunda metade dos anos 1980 à primeira metade dos anos 1990, quando era adolescente. Tinha banda para todos os lados, eu mesmo tive uma no colégio e o punk era a inspiração pelo que representava: a chance de expressar o que sentíamos sem se preocupar com virtuosismos. Eu era o vocalista e revezava com um amigo na função de letrista. Hoje, tenho bem claro para mim que aquela experiência partiu de uma busca pessoal, o desejo de expressar o que sentia em relação ao que acontecia em volta. Enquanto isso, via bandas incríveis agitando a cena, mas também percebia as forças que sabotavam o desabrochar cultural da cidade. Acabou que me encontrei de vez no cinema, onde me sinto mais à vontade para elaborar o que penso, mas foi a música que abriu essa porta. E as forças que sabotavam o desabrochar cultural da cidade continuam atuantes, cada vez mais. Agora, o lugar do rock no mundo? Bom, imagino que a minha história também seja a de milhões de pessoas, que encontraram no rock um refúgio ou mesmo o caminho. E se o mercado vende a ideia de que o rock não tem mais relevância, é mais uma razão para prestarmos atenção no que está sendo feito na cena independente. O filme fala justamente dos que estão à margem das imposições do mercado e fazem a música com paixão.

A cor do filme, que parece gravitar pelo esmaecido, sem saturação, cria distanciamento, o que nos livra de lugares comuns acerca de Brasília e da capital alemã. Como essa cor foi pensada/ buscada em relação ao guião?

Na verdade, o esmaecido é mais presente em Berlim. As características da luz lá, em especial no outono, são muito distintas da luz dura que se tem em Brasília. A luz fica naturalmente difusa em Berlim, é menos “calorosa” do que o habitual para um filme brasileiro, e isso nos interessava, porque o frio é mais um dos obstáculos que Karen enfrenta na jornada dela. Por outro lado, não queríamos um salto muito grande de uma fase (a primeira, em Brasília) para outra na história, então as cores precisaram ser mesmo controladas em princípio. Mas isso não vale para a parte final da trama, quando Brasília oprime a personagem de todos os modos, inclusive com a luz, que passa a ser mais agressiva – por isso filmamos na época da seca. As cidades e a estrutura da trama já indicavam os caminhos para a fotografia do filme. São três as fases vividas pela protagonista, em Brasília, em Berlim e outra vez em Brasília, todas diferentes entre si. Da forma como Karen vivencia as duas cidades veio a conceção não só da luz, mas também do espaço: começamos com planos mais fechados, que seguem a rotina dela tanto no Plano Piloto (a área central do Distrito Federal) quanto no Gama (onde ela mora); com a ida a Berlim, os planos abrem um pouco mais, respiram mais, pois Karen passa a observar o que está ao redor; na volta a Brasília, os planos são escancarados de vez porque a cidade engole a personagem, aquele gigantismo a oprime. Até que Karen entende que precisa assumir as rédeas da história dela.

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