Sábado, 18 Maio

Franco Maresco: “Hoje, ninguém se importa com a luta contra a máfia”

"Era Uma Vez a Máfia" chega finalmente aos cinemas nacionais a 4 novembro

Foi em Sevilha, no ano de 2019, que foi apresentado “La Mafia non è più quella di una Volta” (Era uma vez a Máfia). As suas sóbrias e pessimistas palavras soam como um murro no estômago na análise de uma época que parece ter perdido qualquer sentido de resistência, de ética, de valores que não sejam o materialismo, o consumismo e o viver numa espécie de “eterno presente“.

Cinco anos depois de Belluscone. Una Storia Siciliana, que foi exibido no doclisboa, Franco Maresco retornou com um filme no mesmo estilo. O tema é, sob certos aspectos, algo deprimente: o realizador revisita a memória histórica italiana para saber como sobreviveram no tempo dois dos seus heróis – os juízes Giovanni Falcone e Paolo Borsellini, assassinados pela máfia no início dos anos 90, após conseguirem prender 360 membros da Cosa Nostra.

Na altura, a comoção nacional foi total e absoluta; passados menos de 30 anos, o que sobreviveu desta memória foi, como diz o cineasta, um espetáculo vazio de comemoração a mártires do passado. Isso para não falar da franca hostilidade ou ignorância que o realizador vai encontrando pela rua enquanto entrevista cidadãos de Palermo.

Quem o acompanha é Letizia Battaglia, uma veterana fotógrafa que passou anos a registar os crimes da máfia e cujo trabalho de resistência foi objeto de outro documentário de 2019, Shooting the Mafia, exibido em Sundance e Berlim. Às tantas, pede a Maresco para não ser cético; mas ela própria não esconde a deceção e o vazio que parecem ter tomado conta de tudo e diz: “se calhar vivi tempo demais…

O seu filme aborda duas personagens da resistência à Máfia e toca num ponto-chave: vale a pena lutar, ser um mártir ou um herói quando os alegados beneficiários desta luta não parecem interessados ou são francamente hostis a ela? A sua protagonista, Letizia Battaglia, às tantas pede para você não ser cético…

Em princípio, nunca se deve desistir das batalhas feitas para se opor à m* que nos rodeia. Na Sicília, muitas pessoas foram mortas por terem denunciado os abusos e a violência da Cosa Nostra. Do meu modo pequeno, resistir foi o que fiz por mais de trinta anos com os meus filmes e programas de televisão, mas não posso esconder o facto de que hoje sinto a inutilidade de lutar coerentemente para mudar o estado das coisas.

O que há anos vem acontecendo na Itália, e em Palermo, na política e na sociedade, é um ultraje para a memória daqueles que, desde o pós-guerra, tentaram mudar o meu país: juízes, jornalistas, sindicalistas, políticos etc. Tenho idade suficiente para lembrar-me dos anos de terrorismo, quando um grande jornalista falou sobre a “Noite da República”, o fim da democracia que nasceu há apenas trinta anos, graças à resistência.

Digo isso porque testemunhei um período em que este país teve a capacidade de permanecer unido na luta contra o terrorismo. Dessa unidade, dessa solidariedade nacional, parece-me que nada resta. O mesmo vale para a luta contra a máfia, com a qual ninguém se importa hoje. A guarda baixou, a visão ética de todos nós falhou, ao ponto de uma parte da antimafia ter sido manchada por alguns de seus importantes expoentes que acabaram na prisão. Fala-se da máfia apenas na ficção televisiva e na recorrência da morte de homens como Falcone e Borsellino, onde ela se torna retórica, vazia e obscena.

Você também toca em outra questão fundamental, que é a sobrevivência da memória histórica. A um ponto, a Letizia diz, mediante um espetáculo quase circense de comemoração ao “heroísmo”, que “naqueles dias nós chorávamos, não dançávamos”. Você acha que os factos perdem o seu significado com a passagem do tempo?

Sim, vivemos num mundo de “esquecimento”, onde a História não nos diz mais nada. Nestes anos de crescimento exponencial da tecnologia, muitos filósofos e sociólogos têm nos explicado que caímos numa espécie de presente eterno, que estamos na era das sociedades “líquidas”, e onde não conseguimos encontrar soluções para tudo isso.

Francamente, não vejo como podemos encontrar uma dimensão humana numa sociedade em que todos os aspetos da nossa vida são reduzidos a um espetáculo, principalmente a dor e a morte. Provavelmente devemos esperar, como supõem os transhumanistas, que em breve nos tornaremos pós-humanos, quando deixaremos a nossa espécie Homo Sapiens. E ainda se diz que isso não vai piorar…!

Como descreveria o clima que se viveu em Palermo na altura dos assassinatos de Falcone e Borsellini?

Estávamos todos em choque, num pesadelo coletivo que nenhum de nós jamais havia experimentado. Havia tanta raiva do poder político, que muitos pensavam que uma revolta sem precedentes estava prestes a estourar. Em vez disso, nada aconteceu. Nos meses seguintes ainda assistiu-se ao nascimento do efémero “movimento dos lençóis” dentro de uma parte da sociedade civil, surgido nos salões da burguesia “iluminada” de Palermo. Mas faltava uma consciência de massa, um sentimento popular comum e, pouco depois, após a onda emocional, tudo acabou em nada.

E aqui chegamos ao paradoxo, um daqueles tipicamente sicilianos. Quando, em 1994, Silvio Berlusconi fundou seu partido, Forza Italia, um novo ponto de referência político para a Cosa Nostra após o fim do Partido Democrata Cristão, toda a Sicília recebeu-o de braços abertos como um novo Garibaldi. O que diz muito sobre o meu ceticismo e o de outros hoje. Acho que o escritor Leonardo Sciascia estava certo quando disse que “os sicilianos não acreditam que as ideias possam mudar o mundo“.

(entrevista originalmente publicada em novembro de 2019)

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