Domingo, 12 Maio

Tiago Guedes : “Tristeza e Alegria na Vida das Girafas respira a boa vontade das pessoas”

Tiago Guedes fala ao c7nema sobre dois projetos num só ano, a repercussão de A Herdade e traduzir teatro em cinema

Tiago Guedes traz um segundo filme ao público no ano de 2019: Tristeza e Alegria na Vida das Girafas. O realizador de A Herdade falou ao c7nema sobre a produção do novo filme, rodado em apenas três semanas no ano de 2017, o orçamento baixo, mas também sobre as partes positivas sobre este tipo de produção.

Estrelado pela própria filha, de quem surgiu a ideia inicial para a adaptação da peça homónima para o cinema, Maria Abreu e Tónan Quito, como as personagens Girafa e o urso Judy Garland, a nova longa-metragem de Guedes é uma aposta de estranheza ao mesmo tempo de compaixão. Confira aqui a entrevista completa com o realizador.

Coisa Ruim é o seu primeiro longa e, a fazer um panorama, é muito diferente de Tristeza e Alegria na Vida das Girafas, e isso acontece em toda sua filmografia. Isso quer dizer o que sobre o Tiago Guedes como realizador?

Eu não gosto de me repetir e gosto de ir à procura do que me apetece falar naquele determinado momento, e as formas normalmente dependem disso. Ou seja, a forma como eu faço também depende do que que eu acho mais certo para determinado projeto. Acaba por refletir um bocadinho essa minha vontade de diferença. Eu não quero fazer diferente, mas coincide que as coisas que vão me interessando têm sido diferentes.

Uma coisa interessante é As Girafas ter sido rodado antes de A Herdade e ser lançado depois.

Sim, foi gravado em 2017 durante o verão. Foi exatamente um ano antes de A Herdade. Foi lançado depois deste porque aconteceu, não foi intencional. A Tristeza e a Alegria demorou muito tempo na fase de pós-produção porque tivemos alguns problemas financeiros para conseguir resolver. Fizemos o filme num período muito curto e foi tudo sempre feito com tempos mais alargados, e depois esperamos pela música do Manuel Cruz, que estava a gravar um disco. Isso também fez aqui um compasso de espera. Ao mesmo tempo, entrei em fase de preparação e reescrita d’A Herdade e também comecei a ficar menos disponível. Portanto, A Herdade ultrapassa um bocadinho As Girafas e depois aconteceu que, quando este estava pronto, A Herdade foi aceite em festivais importantes e teve que se antecipar. Aconteceu aqui uma ultrapassagem.

Nos créditos finais descreve que o apoio do ICA é somente à finalização. Qual foi esta relação?

Foi uma relação normal e idêntica a todos os realizadores que são apoiados de vez em quando pelo ICA. É uma relação de dependência em alguns momentos, os projetos no nosso país estão sempre muito dependentes desse apoio, se bem que As Girafas foi feito um bocadinho a tentar furar esse esquema e conseguimos usufruir de um outro tipo de apoio deles que é o da finalização, que nos foi muito útil porque permitiu-nos terminar o filme com dignidade.

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As Girafas é um filme caseiro no quesito temático e de produção. Quais são os aspectos negativos e positivos disso?

As dificuldades são óbvias, falta de tempo. Tive que filmar As Girafas em três semanas, o que é muito curto. Portanto, foi um exercício de endurance rápido e muito complicado. O lado positivo foi, reunimos uma equipa e atores com muita vontade de transformar aquele filme, e que se assim foi possível de transformar aquele texto em filme. Este projeto também respira essa boa vontade das pessoas todas, ou seja, toda a gente queria muito o melhor para o filme e, portanto, houve esta dinâmica entre o que é mal e o que é bom.

A personagem do Urso é um alter-ego disruptivo da personagem da Girafa.

Ele representa tudo aquilo que ela não consegue ser, aquilo que ela não consegue dizer, as raivas todas, as dores todas e as revoltas. Ele preenche esse papel. A Maria Abreu já conhecia a peça de teatro e já conhecia os atores todos, inclusive conhece muito bem o Tónan Quito, que faz o Urso, ou seja, ela estava muito por dentro de todos os processos e todas as personagens, portanto, não houve problema.

No início pode haver uma tentativa do espectador de descobrir se há algum tipo de distúrbio comportamental no personagem da Girafa, mas depois isso é substituído pelo mergulho no próprio mundo dela. Era isso o que queria?

Sim, eu nunca quis misturar, clarificar ou facilitar para o espectador o que que era o imaginário ou qual era o problema dela, ou até mesmo a verdade. Eu quis sempre manter essa dúvida porque é só assim que eu conseguia que a existência de um Judy Garland e de um Tchekov e dos vários elementos que lhe vão surgindo fossem minimamente credíveis dentro dessa dúvida. Se eu delimitasse muito concretamente essas fronteiras, primeiro que entrava para uma zona que não me interessava muito que era estar a facilitar a vida de quem perguntava se era real ou não era real, e não me interessava isso, apetecia-me manter essa ambiguidade até o fim. Senão era muito difícil voltar àquele quarto. Para mim isto sempre foi uma das razões, porque lembro-me de ter algumas questões com pessoas que produziram e que acharam que em certos momentos deveria ser ali um pouco mais claro, mas eu insisti muito nessa ambiguidade.

Então acredita que o objetivo do filme foi alcançado?

Sim, estou muito contente com o resultado do filme. Com estas dificuldades todas que tivemos, eu praticamente as esqueci todas agora quando vi em São Paulo na Mostra, e foi muito gratificante. Senti-me um espectador porque já tenho uma distância grande do filme e sentir o público todo muito agarrado a rir e a chorar e a ficarem perturbados no final, aflitos, a compreenderem. Senti que o filme chega e que as pessoas não ficam indiferentes é, para mim, muito importante, porque perceber que aquele tempo dedicado ao filme não é uma coisa que se vai esquecer logo a seguir. É uma das coisas que eu gosto nos filmes que mexem comigo, portanto, se os meus filmes conseguirem fazer isso com os outros eu fico muito contente.

Juntar Judy Garland e Tchekov na mesma personagem é algo muito interessante. Como foi o processo dessa adaptação?

Na peça do Tiago Rodrigues isso tem tudo a ver. Conheço bem o Tiago e acredito que tem a ver com todo o seu imaginário que é muito vasto e com toda a sua cultura, são paixões grandes dele. Sei que ele gosta muito do Feiticeiro de Oz e adora o Tchekov, portanto, todas essas formas dele conseguir reunir aquilo tudo é de uma forma brilhante. Introduzir essas junções e mesmo até quando ele vai buscar o Spartacus… para mim isso tudo é maravilhoso, porque a construção é genial no texto e voz da Girafa, porque tudo aquilo parece filtrado pela cabeça de uma criança que vai apanhando isso tudo. O Judy é também a Girafa nalguma forma, e estas construções que ele vai fazendo são junções infantis e é muito engraçado, sempre gostei da mistura dessas referências todas.

Acha que os grandes festivais de cinema servem não só para difundir externamente um filme como também para, de certa maneira, aumentar a consideração do público in loco sobre ele?

Isso obviamente acaba por acontecer, acho que há um reflexo disso. Para mim, o mais importante é o filme conseguir chegar para o maior número de espectadores possíveis, e se sair das fronteiras do nosso país, melhor ainda. Obviamente sente-se um reflexo desse sucesso, no caso de A Herdade, que o filme vai tendo e até As Girafas com a Mostra, tudo isso reflete. Sinto que aumenta pelo menos a curiosidade das pessoas, mas para mim o que é mesmo importante é que elas vão ver e depois tirem as suas conclusões. Quanto mais comunicação existir, maior a possibilidade do filme ser visto.

Acredita que 2019 foi um bom ano para o cinema?

Não sou muito de estar a fazer comparações, mas acho que obviamente temos prémios internacionais, filmes com público, e, portanto, sim. Em presença em festivais acredito que Portugal tem sido bastante assíduo, tem tido sempre alguns representantes nos maiores festivais, se calhar não tanto nas grandes competições como foi agora em Veneza, mas tem estado sempre presente nalguma forma. Não é um país que esteja estranho aos festivais. Comercialmente temos o caso de Variações, que eu não vi, mas sim, acho que é bom e eu acho que filmes como A Herdade que esteve em festivais e estar a fazer perto dos 75 mil e a caminho dos 80 mil [espectadores] é muito bom para a nossa realidade, mas se vamos comparar com outros países é ridículo.

E agora, vêm novos projetos.

Sim, tenho. Não posso falar muito sobre eles porque não me decidi. Tenho vontade de voltar a fazer cinema em breve e é nisso que vou tentar agora.

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