Terça-feira, 7 Maio

‘A Nossa Bandeira Jamais Será Vermelha’: “Os media brasileiros funcionam como uma organização criminosa”

Um dos destaques da seção Cinema de Urgência do Doclisboa, que decorre até 27, o documentário brasileiro A Nossa Bandeira Jamais Será Vermelha demonstra de uma forma muito direta o envolvimento catastrófico da imprensa na política brasileira dos últimos anos, abrindo as portas para a emergência do populismo de tonalidades fascistas que terminou por vencer as eleições.

O C7nema entrevistou o cineasta Pablo López Guelli, que acredita que a forma de atuação das empresas de comunicação no país são uma “aberração” e que, “como uma organização criminosa“, elas “não têm nenhum problema em destruir um país inteiro para fazer valer os seus interesses“.

Mais do que isso, Guelli coloca a questão que é a grande ameaça às democracias ocidentais: o desnível do impacte dos sentimentos sobre a razão. “É impossível um facto discutir com um sentimento, uma emoção. A emoção ganha“.

O debate gerado aqui no Doclisboa tem o tema da neutralidade nociva da imprensa – eventualmente mais adequada ao caso português. O que vemos no seu filme, no entanto, é precisamente o contrário – uma imprensa, liderada pela Rede Globo, bastante ativa e nem particularmente subtil…

Da minha experiência como jornalista e correspondente internacional, posso dizer em nenhum outro lugar do mundo existe um nível de manipulação e cinismo tão grande como vemos na imprensa brasileira. É uma aberração.

Não é exagero dizer que a mídia local funciona como uma organização criminosa: ao invés de armas e bombas, ela usa a informação para destruir a reputação de governos e pessoas. E, como o filme mostra, ela não tem nenhum problema em destruir um país inteiro para fazer valer seus interesses.

E como isso é possível? Porque na prática a imprensa no Brasil é quase sempre o “primeiro poder”. Ela possui uma força maior do que qualquer democracia com a qual eu esteja familiarizado.

Essa imprensa é composta por seis famílias, “6 Berlusconis” que juntos detêm 90% da audiência nacional. São empresas oriundas das oligarquias que prestaram serviço à ditadura militar. A TV Globo é o exemplo mais emblemático e o mais nocivo de todos. Não é possível explicar em poucas linhas o mal que a Globo faz ao Brasil.

O documentário apresenta alguns exemplos de manipulação por parte dessa mídia durante o período que vai de 2013 a 2019. Como se trata de um filme de 72 minutos, naturalmente tivemos de selecionar as mentiras que tiveram um maior impacto na construção modulada da crise que levou o Brasil ao fascismo. Mas se quiséssemos mostrar em um filme a quantidade de mentiras que essa imprensa já contou seria necessário produzir uma série de TV, com 13 episódios e várias temporadas.

Para que se entenda aqui em Portugal, a Globo foi bastante bem-sucedida na campanha anti-PT e na queda da Dilma… Mas foi menos eficiente na hora de conseguir eleger alguém mais do seu agrado para presidente. Acha que a vitória de Bolsonaro representou, de um lado, um efeito colateral indesejado para a Globo?

De facto, a Globo foi menos eficiente na hora de escolher seu candidato. Mas não acredito que Bolsonaro tenha sido um “efeito colateral indesejado”.

A Globo queria um tecnocrata que desse continuidade às políticas do governo golpista. Ou seja, queria um presidente que acabasse com qualquer tipo de ajuda aos mais pobres e rompesse os contratos sociais.

Para essa nobre missão eles contavam com um candidato que é conhecido aqui como “picolé de chuchu”, tamanha a (falta de) emoção que provoca no povo. Naturalmente ele perdeu, e o segundo turno foi disputado entre um candidato do PT e Bolsonaro, um ex-militar fracassado, de caráter fascista, que passou 30 anos na política sem aprovar um único projeto de lei.

Como a Globo foi a principal responsável pela criminalização do Partido dos Trabalhadores (PT) ao longo das últimas décadas, especialmente a partir de 2013, ela simplesmente não podia permitir a volta do PT ao poder. Era uma questão estratégica, de sobrevivência. Então do ponto de vista da TV Globo, teria sido muito pior se o PT tivesse vencido a eleição de 2018.

De forma que a Globo deixou que o ovo do fascismo que ela criou fosse chocado, e Bolsonaro venceu. Eu diria que foi mais um gerenciamento de risco calculado do que um efeito colateral indesejado. A balança pesou para o “menos pior”, na visão da empresa. Porque tudo é calculado dentro da Globo.

Acha que a vitória de Bolsonaro, que menosprezou os “media” tradicionais e baseou-se largamente nas redes sociais e nas “fake news”, significa, tal como Trump, a enfatização da perda de poder dos “media” tradicionais?

Sem dúvida. Bolsonaro adotou a mesma tática da nova direita: uso massivo de “fake news” e redes sociais com o objetivo de mobilizar uma parcela da população por meio de sentimentos – a pós-verdade.

Ao invés de debater com factos, esses políticos criam “notícias” – “memes”, “fake news”, “stories” etc – que vão de encontro ao medo ancestral das pessoas, sempre com forte apelo ao nacionalismo, religião e à família. Nos EUA e na Europa um dos inimigos é o “imigrante”, o que vem de fora. Aqui no Brasil inventaram a historinha do “comunismo”, como se vivêssemos nos anos 60 e os russos estivessem a ponto de invadir o país. Vem daí o nome do filme: A nossa bandeira jamais será vermelha.

Acredito que os “media” tradicionais perderam a espaço de dialogar com a maioria da população porque agora precisam enfrentar essas narrativas fantásticas. E eles não conseguem competir porque boa parte deles (ainda) se baseia em fatos. É impossível um facto discutir com um sentimento, uma emoção. A emoção ganha. No Brasil estamos vivendo nesse estado de transe há alguns anos.

Então por exemplo: um cientista premiado e diretor de um dos principais órgãos brasileiros de pesquisa vai à imprensa e afirma que está havendo um aumento de focos de incêndio na Amazônia. Isso é um facto. Ele tem dados reais que mostram o aumento exponencial de incêndios. Aí o presidente do Brasil fica sabendo da notícia e faz o quê? Decide demitir o renomado cientista, anunciando para seu fiel público do Twitter que ele foi demitido porque estava “fazendo campanha contra o Brasil”.

De que adianta, numa sociedade polarizada e ignorante como a brasileira, que os jornais impressos e a TV mostrem que os dados são reais? A emoção já venceu e tirou o foco da discussão. Mesmo que a imprensa tradicional mostre os dados e faça reportagens in loco, a bolha que apoia o presidente (30% da população) já está de acordo: esse cientista faz campanha contra o Brasil e deve ser punido. Essa passa a ser a “notícia” discutida nas redes sociais.

Em termos históricos, o que Bolsonaro, Trump e outros estão fazendo não é novidade. Eles dividem para conquistar. Dividem a sociedade a partir dessas novas máquinas de disseminação de informações usando medos genéricos. Nesse sentido, me parece que a imprensa de facto perdeu quase todo seu poder – com exceção da imprensa brasileira, já que ela mesma é uma máquina de disseminação de mentiras.

Um depoimento também fala da descredibilização da Veja e a “morte” da revista. Como é atualmente a situação da revista e do grupo Abril?

A Veja foi a principal representante do chamado “jornalismo de esgoto” que vigorou nos últimos anos no Brasil. Suas capas eram motivo de piada para boa parte da população – pelo menos para a parte minimamente informada.

No entanto, para os demais veículos de comunicação, especialmente para a TV Globo, a Veja era extremamente útil: ela proporcionava as “notícias” contra o PT e o Lula que primeiro seriam repercutidas nos programas da Globo, e depois pelos jornais Folha e Estado de São Paulo. Essa foi a espinha dorsal da máquina da “fake news” que assolou o Brasil entre 2013 e 2019: capa da revista Veja com denúncias contra o PT na sexta-feira; matérias sobre as denúncias em todos os telejornais da Globo no final de semana e mais repercussão sobre a “reportagem” a partir de segunda-feira. No final de 2018 a população brasileira estava completamente envenenada por essa fórmula macabra. A eleição de Bolsonaro foi apenas o resultado de um ódio à política criado por esses “medias”.

Sobre a situação da Editora Abril, que edita a Veja: ela está em processo de recuperação judicial, com uma dívida de 350 milhões de euros. No começo do ano foi vendida por um valor simbólico para um grupo de investimentos.

80% dos credores dessa dívida são os bancos. Ou seja, depois do período de “jornalismo de esgoto” a editora quebrou e quem dirige hoje a revista na prática é o capital, os bancos. Há mais de mil ex-funcionários da empresa que estão sem receber seus salários desde o começo deste ano.

Um dos depoimentos fala que a elite liberal não quer uma ditadura, mas que elegeu um proto-ditador para acabar com os contratos sociais. Como acha que pode se desenrolar este paradoxo nos próximos anos?

Ao optar por um aspirante a ditador, a oligarquia brasileira (o Brasil não possui “elite”, mas oligarquia) espera que ele cumpra seu papel: a exploração ao máximo das classes sociais mais baixas e a venda imediata das riquezas do país.

Nesse sentido, Bolsonaro está se saindo bem: a Petrobrás, Embraer e outras empresas símbolos do Brasil já foram vendidas. A Amazônia está sendo dizimada e posteriormente será ocupada por fazendeiros para produção de soja. Já há uma lei que autoriza parte da população brasileira a comprar e usar armas, atendendo ao “lobby” das empresas. O número de novos agrotóxicos autorizados por este governo chegou a 325 neste ano – boa parte são agrotóxicos que foram proibidos na Europa e nos EUA. Enfim, a lista de obscenidades contra a população é longa.

Em termos de sucessão presidencial, ainda é muito cedo para saber o que pode acontecer, mas a Globo já está se mexendo para a eleição de 2022. Recentemente um dos seus apresentadores de programa de auditório, Luciano Huck, disse que pode se candidatar. Em outras palavras: a TV Globo poderá ter, enfim, um representante seu sentado na presidência do Brasil, o sexto país mais populoso do mundo, em 2022.

O mais talentoso dos argumentistas de “House of Cards” não seria capaz de criar nada parecido.

A Folha de São Paulo, que também é parte da “grande imprensa”, tem feito ataques agressivos ao atual governo.

A Folha de São Paulo fez algumas reportagens recentemente mostrando, por exemplo, que Bolsonaro ganhou a eleição a partir de um esquema de “fake news” patrocinados por empresas. Naturalmente, a notícia foi ignorada pela Globo e demais “medias”.

De vez em quando, a Folha faz algum tipo de reportagem mais crítica, mas a questão é que essas reportagens não têm “fôlego”, ou seja, a notícia aparece e logo desaparece do jornal. Parece aquele aplicativo, Snapchat. Diferente da época em que o PT estava no poder, quando o jornal fazia longas reportagens, durante meses gritando valentemente contra a corrupção e, claro, repercutindo as mentiras da revista Veja.

É importante lembrar que a Folha de São Paulo é um jornal que foi parceiro da ditadura militar e que já chamou em editorial a ditadura brasileira de “ditabranda” – porque em comparação com as demais ditaduras latino-americanas a brasileira teria sido mais “branda”.

A Folha também inventou uma ficha falsa de detenta da ex-presidenta Dilma Rousseff e publicou a falsificação na primeira página do jornal de domingo. Inventaram, literalmente, uma reportagem dizendo que a Dilma queria, na época da ditadura, sequestrar um político. E essa “notícia” foi dada no meio da campanha eleitoral para presidente, quando a Dilma disputava o segundado mandato.

Então a Folha só é agressiva com partidos de esquerda e minorias em geral, que ela detesta. Com os donos do dinheiro ela é bem mansa e benevolente. Até porque a Folha, como os demais “medias” brasileiros, dependem do dinheiro público como nós dependemos do ar para viver.

 

Exibições no Doclisboa

22-10-2019 – 21:30 – Cinema São Jorge – Sala 2

 

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