Quinta-feira, 9 Maio

Antonella Sudasassi Furniss: “Existem muitos mal entendidos do que significa feminismo”

Vencedor do Prémio do Público na secção Panorama da Berlinale, “Memórias de um corpo que arde“ é uma viagem emancipadora, ainda que dolorosa, às memórias do passado de um grupo de mulheres que cresceram numa era repressiva em que a sexualidade era um tema tabu.

Nesta viagem assinada por Antonella Sudasassi Furniss, o espectador conhece Ana, de 68 anos, Patrícia, de 69, e Mayela, de 71,  que nos contam o que significava ser mulher ao longo de várias décadas, das restrições às regras, sempre com vista a expetativas muito claras, mas redutoras.

Potente e propenso a longas conversas sobre a condição da mulher ontem, hoje e amanhã, “Memórias de um corpo que ardeé um objeto imperdível para qualquer pessoa que abrace o feminismo.

E foi sobre o seu filme e o termo feminismo, que ainda gera muita confusão em várias mentes, inclusive nas protagonistas deste filme, que conversámos em Berlim com a cineasta.

O filme é muito potente nas histórias de repressão que relata. Como nasceu a ideia de o filmar?

O projeto começou depois de uma conversa com a minha avó. A minha avó materna já tinha falecido, a paterna continuava viva, mas creio que lhe cacei as últimas chamas da sua memória. Depois do meu primeiro filme, fiquei com muitas dúvidas de como tinha sido para as minhas avós criarem-se como mulheres num contexto que eu sabia que tinha sido muito repressivo. Claro que muitas das coisas que ouvi sobre elas tinham proximidade à minha própria história: o desconhecimento, o tabu do sexo, etc. 

Lembro-me que no colégio era um pecado falar de sexualidade, ainda que num nível menos repressivo que no tempo delas. Questionei-me assim de como tinha sido crescer e comecei a conversar com a minha avó paterna sobre o assunto. Porém, ela já não conseguia aprofundar os temas, devido à idade. Senti que fiquei com uma conversa pendente com as minhas avós e comecei a falar com outras mulheres da sua geração. 

Tentei entender se havia um ponto de encontro nessa geração ou se as suas experiências de vida tinham sido diferentes. O que aconteceu é que descobri mulheres de diferentes contextos que viveram exatamente as mesmas coisas: a incerteza e desconhecimento em relação aos seus corpos. A partir disso comecei a aprofundar as conversas durante quase dois anos. Foi quase uma sessão de terapia para elas e para mim. Depois de ouvir tudo o que disseram decidi escrever um guião de forma a combinar todas estas experiências num filme só. (…) No filme estão elementos sobre 8 pessoas, 3 das quais predominam. Algumas das mulheres quiseram manter-se anónimas, não apenas para poderem falar com mais liberdade, mas com medo de magoar ou chocar aqueles que lhes são mais próximos. Curiosamente, nem tinham tantos problemas de eventualmente magoar os filhos com as histórias que contavam, mas principalmente os netos. Tinham medo que os netos pensassem mal dos avôs ou delas.

Memórias de um corpo que arde

O sexo continua a ser um tabu na Costa Rica?

O sexo continua a ser um tabu e nós tendemos a santificar as nossas avós .A partir de uma certa idade, elas são umas santas e virgens que não se interessaram nunca por sexo. (risos)

Mas quando no filme falas do orgasmo, rompe-se o tabu…

Sim e, para muitas delas, só o falar em masturbação quando eram mais novas era visto como um pecado. Muitas delas só conheceram o orgasmo num estado avançado das suas vidas, já com o segundo ou terceiro marido.

A igreja foi fulcral para esse tabu em relação ao sexo…

A Igreja continua muito forte na Costa Rica. Nós temos uma religião, a católica, na nossa constituição. Quando tinha 16 anos estava no décimo ano e tivemos uma conversa na escola com uma católica dominicana sobre sexualidade. Não me lembro do nome dela, mas lembro-me do que ela disse e que me escandalizou: só podíamos ter sexo se estivéssemos a pensar em ter filhos. O sexo por prazer era pecado. Sei que saí da aula e da escola a querer falar com a diretora para perguntar que raio era isto. Estamos no século XXI e vêm com estas conversas! Creio que nos últimos 5 ou 10 anos já houve avanços nesta matéria, mas a religião continua a atravessar o nosso caminho no dia a dia, em especial através da culpa cristã. Tenho amigas que dizem que a masturbação ainda é vista como um pecado.

E tens medo que o crescimento dos movimentos de direita mais radical que têm conquistado parte da América do Sul provoquem um novo retrocesso na condição das mulheres e o crescer novamente do tabu do sexo?

Tenho esperança. Sinto que estas mulheres atravessaram todo um inferno pessoal e que agora estão empoderadas em relação à sua sexualidade e vida. Vê-las melhor agora aos 70 anos faz-me acreditar que as coisas vão continuar a mudar para melhor. O avanço da ultra-direita tem provocado retrocessos, como nos EUA, com a revisão da lei do aborto. Temos de estar sempre em alerta para podermos decidir sobre os nossos próprios corpos. 

E vais com o teu cinema continuar em “alerta”?

Tem de ser. Temos de trabalhar sempre muito e estar sempre em alerta. 

O termo feminismo ainda provoca muita desconfiança e na América do Sul fala-se muito em feminazis como forma de confundir o discurso. Como vê isso?

O feminismo procura equidade entre os sexos e igualdade de direitos. É um movimento que nos envolve a todos e exige uma solidariedade global. Para as mulheres do meu filme, o termo feminismo assusta. Existem muitos mal entendidos do que significa o feminismo e as mulheres que me contaram as suas histórias não se definiam como tal, mesmo que o que me diziam fosse contrário a isso. Elas lutavam pela sua felicidade, sexualidade, etc. Quando me diziam que não eram feministas, mas eram chamadas de tal, essa frase dizia muito. O termo feminismo ainda assusta. Algumas pensam que é simplesmente a luta de mulheres contra os homens ou as mulheres odiarem os homens. Uma das formas de desprestigiar as tuas ideias tem sido caracterizar-nos como feminazi.

Orientando o discurso feminista para a indústria de cinema do seu país, como tem sido a participação ativa de mulheres na 7ª arte? Tem havido resistência a que se contem mais histórias assinadas no feminino?

Na Costa Rica há muitas mulheres a fazerem cinema. Faço parte da União de Realizadoras do meu país e muitas delas têm pelo menos uma longa-metragem realizada. Numa indústria tão pequena, é um número brutal. Creio que tem a ver com o facto de ser uma indústria muito nova, sem os vícios do passado de uma indústria mais velha e masculinizada. O cinema feito pelas mulheres na Costa Rica é aquele que mais chega aos festivais de cinema do mundo. É o cinema que mais representa o país fora de portas. Sinto-me feliz por isso e sinto uma abertura para as mulheres contarem as suas histórias.

Tens um novo projeto? Podes falar dele?

Sim, claro (risos). Tenho vários, mas de momento estou a trabalhar num que se chama “Monstros” . Desta vez escrevo e produzo e realiza o meu sócio, o Manrique Cortés. É uma ficção e fala da paternidade de um pai ausente. Um homem que foi pai na adolescência e foi proibido de ver a sua filha.

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