Quinta-feira, 9 Maio

Roman Bondarchuk e como o humor é o melhor remédio para o pesadelo ucraniano

Com várias curtas-metragens e documentários na bagagem, Roman Bondarchuk (“Vulcano”; “Ukranian Sheriffs“) trouxe ao Fórum da Berlinale a sua segunda longa-metragem de ficção, “The Editorial Office”, uma corrosiva sátira política, social, lúdica e até ecológica, cuja ação decorre em Kherson, na Ucrânia, mas que tem um pouco por todo o lado eventos que poderiam acontecer em qualquer país.

No filme seguimos Yura, um jovem biólogo idealista que, na procura de conseguir a fotografia de uma marmota que se pensava extinta no país, testemunha um incêndio criminoso. Tira fotografias aos criminosos e tenta expô-los na imprensa, começando por isso mesmo a trabalhar para um jornal. Longe de seguir o verdadeiro rasto das notícias e perdendo-se em futilidades corriqueiras, dignas da imprensa cor-de-rosa, Yura começa a ver-se envolvido em situações tão absurdas que mostram uma cultura da corrupção e do espetáculo fútil da sociedade atual.

Presente em Berlim para apresentar o seu filme, falou ao C7nema sobre a produção e os maiores desafios que encontra no cinema ucraniano atual.

O filme aborda múltiplas questões sobre a Ucrânia, desde a guerra, a corrupção generalizada, o sensacionalismo da imprensa e a relação dos políticos com negócios obscuros, enquanto para o povo oferecem várias formas de entretenimento que incluem danças para o Youtube. E não se esquece também de falar da condição da mulher e até de influencers das redes sociais. Como chegou a todos estes temas e os unificou num filme extremamente compacto? 

Venho do mundo dos documentários e começo sempre os trabalhos como se fosse um que fosse filmar, ou seja, investigar e pesquisar muito. Muitas das coisas que vemos em cena vêm da minha própria experiência de trabalho num jornal da província, quando tinha 14 anos. Foi algo de louco. Para terem uma ideia, o responsável pela distribuição dos jornais era também encarregado de fazer o horóscopo. Se os textos e previsões fossem boas, poderiam ser publicados (risos). E toda a gente acreditava nas previsões. Foi a partir das minhas experiências e das dos meus pais, que também trabalhavam na área, que fui buscar grande parte das ideias. Outras vezes, as ideias vieram de conversas que tive com jornalistas dessas áreas mais pequenas. Na verdade, nessas regiões as coisas estão exatamente iguais há dez anos. Antes da invasão Russa, nada acontecia nessas localidades. Queria artisticamente fazer uma reflexão sobre os tópicos que abordo, que se pensarmos bem são universais. (…) Mas há coisas bem estranhas no filme baseadas em coisas reais. Por exemplo, o negócio das funerárias é muito lucrativo, por isso também existem gangues dessas funerárias. 

A parte dos políticos a entrar nas trends e a oferecerem espetáculo é universal…

Sim, os políticos a fazerem danças para conquistar votos vemos em todo o lado. E até a questão do político que entra em estado de coma e atrai uma série de pessoas e culto em torno da sua recuperação, pensava que seria apenas algo que funcionaria bem na Ucrânia. Porém, um  colaborador técnico do filme que é da República Checa, disse-me que isso já aconteceu também no seu país.

Filmou antes do início da invasão russa, mas o pós-produção já decorreu depois da guerra se estender a todo o lado. Mudou alguma coisa no filme a esse propósito, ou seja, o seu filme mudou?

Tirando o epílogo, conseguimos filmar tudo antes da invasão total por parte da Rússia. Mas, quando começamos o pós-produção, a guerra estalou e o nosso montador juntou-se aos militares. Ele esteve na reconquista de Kherson, porém, foi depois morto no leste do país. Estivemos parados quase um ano e, quando quisemos voltar aos trabalhos, já com outro montador a bordo, notamos que as filmagens nos levavam a muitos sítios que agora já não existem ou estão ocupados, criando desconforto. É através do humor que consigo esquecer os pesadelos que vivemos. Por isso, este filme teve em mim um efeito terapêutico.

Quando voltámos ao pós-produção, já com novos montadores (Viktor Onysko, Nikon Romanchenko), tivemos uma ajuda importante nessa área por parte da Heike Parplies (montadora de “Toni Erdmann“), a qual já me tinha ajudado como consultora no meu filme anterior. Foi ela que na última fase do projeto ajudou-nos a sair de alguns becos, encurtar largamente cenas e dar a consistência como de um todo ao filme.

O que é ser cineasta hoje em dia na Ucrânia e quais os maiores desafios que enfrenta ao trabalhar nesta arte?

O maior desafio que atualmente enfrento é o de perder aqueles que amo. Muitos daqueles com quem trabalho são amigos. Somos uma família. Recentemente perdemos um dos atores deste filme. E nosso protagonista está atualmente a servir o país e desde que foi para os combates, não é a mesma pessoa. Estive com ele recentemente e notei que ele já não sorria e fuma cigarros atrás de cigarros. No cinema, ao longo desse percurso, vais ganhando confiança com os colaboradores, criar amizades, etc. Passando de projeto em projeto, pensas em levar os colaboradores contigo, mas agora já não podemos pensar assim, pois tudo pode mudar de repente. É muito difícil prever quem vai continuar ativo no cinema depois do fim da guerra. Até podemos ter dinheiro para fazer o filme, mas vai ser cada vez mais difícil encontrar técnicos. 

E acha que o cinema é uma ferramenta importante na Ucrânia dos tempos atuais?

Um paradoxo que existe hoje em dia é que agora há cada vez mais interesse no cinema ucraniano. Antes da invasão russa, o nosso cinema era forte mas surgia principalmente em festivais. Na verdade, a maioria das pessoas pensava sempre: “vamos esperar que o filme chegue aos Torrents”. Depois da invasão, as pessoas cada vez mais vão ao cinema, seja para ver um filme de autor ou uma comédia familiar. Talvez seja um fenómeno que revela unidade. Temos cada vez menos salas, pois algumas foram destruídas, menos pessoas, pois muita gente saiu do país, mas os números de espectadores aumentaram.

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