Segunda-feira, 20 Maio

No “Corno do Centeio”, o masculino nunca vai ao centro

Apesar de curto, em distâncias geográficas equivalentes a sete minutos a pé, a trilha percorrida pela realizadora espanhola Jaione Camborda com o C7nema, do Hotel Maria Cristina ao Kursaal – dois pontos centrais do perímetro cultural da cidade basca de San Sebastián –, parecia uma maratona, não de esforço físico, mas do saber. Nos dias que antecederam o encerramento da 71ª edição do festival ibérico, a cineasta de 40 anos andou numa correria para falar com jornalistas de toda a Europa por causa da calorosa receção ao seu “O Corno do Centeio”. A conversa connosco aconteceu numa quinta-feira e, no sábado a seguir, o nome dela foi anunciado quando a presidente do júri, a francesa Claire Denis, divulgou o vencedor da Concha de Ouro de 2023.

Há fronteiras políticas na maneira como a sociedade pensa o corpo da mulher e a gravidez. A fertilidade e o aborto são marcadores dessa territorialidade de exclusão feminina”, disse Jaione ao C7nema, ao comemorar a receção na sua cidade natal, Donostia, da sua longa-metragem, feita em coprodução com a Bando a Parte, de Rodrigo Areias.

A realizadora espanhola Jaione Camborda com a Concha de Ouro de San Sebastián, a sua cidade natal – Foto de Jorge Fuembuena – SSIFF

Apesar do seu título sugerir uma traição, na lógica cultural latina, “O Corno do Centeio” não fala sobre adultérios e, sim, dos direitos das mulheres sobre os seus ventres, organismos e liberdades, inclusive a de amar. Jaione viaja ao passado, nos anos 1970, na fronteira da Espanha com Portugal, para contar a fuga de uma parteira María (Janet Novás). “Eu fiz o filme numa região que é cortada pelo Minho, numa zona na qual se entende o galego e o português, mas há um perigo imposto pela divisão do estado, num tempo de uma vigilância extrema nas fronteiras e até mesmo no trânsito das províncias”, disse a cineasta.

No enredo, Maria ajuda uma jovem a abortar. A morte da mulher faz da personagem vivida por Janet um alvo da polícia, o que a obriga a sair do seu lar e procurar uma nova vida. “Pela data, estamos, sim, num período de franquismo, mas o regime ditatorial de Franco não é uma aparição direta ou explícita no meu filme. Preferi retratá-la como um perigo que ronda aquele mundo, silenciosamente”, explicou a realizadora, antes conhecida por “Arima” (2019) e “Rapa das Bestas” (2017). “Nunca procurei ressaltar elementos históricos na narrativa, pois quis que o filme pudesse parecer algo estilisticamente próximo do Presente, dos tempos de hoje, a fim de se conectar com questões contemporâneas sobre a proibição imposta ao corpo das mulheres que ainda ocorre hoje”.

Nos ecrãs, a fotografia de Rui Poças amplia a potência estética da investigação social da cineasta. “Jamais reduzo os homens a uma representação crítica. Era importante nunca satanizar o masculino. A minha forma de valorizar o feminino naquele mundo machista parte de um princípio simples: nunca enquadrar os homens no centro da narrativa”, disse Jaione. “É um filme com mulheres no protagonismo, em vivências à flor da pele. Usei testemunhos reais para montar a narrativa, de modo a levar o mundo ibérico em sua concretude ao filme”.

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