Segunda-feira, 20 Maio

“Dança Primeiro. Pensa Depois”: a vida de Samuel Beckett chega ao cinema

"Dança Primeiro. Pensa Depois" estreia em Portugal a 4 de janeiro

Vencedor do Oscar em 2009 por “Man on Wire” (Homem no Arame), James Marsh tem dedicado grande parte do seu trabalho ficcional em torno de histórias baseadas em factos reais. E depois de filmes como “The Mercy” (2018) e “King of Thieves” (2018), o cineasta do sucesso “The Theory of Everything” (A Teoria de Tudo), em torno do mítico Stephen Hawking, regressa agora às nossas salas com “Dance First” (Dança Primeiro. Pensa Depois), no qual é a figura do dramaturgo e escritor irlandês Samuel Beckett.

Foi em Lisboa, no Hotel da Lapa, que nos encontrámos com ele e descobrimos um pouco mais sobre este filme que mostra como Beckett se tornou imortal no mundo literário e a importância que diversos relacionamentos tiveram na sua formação pessoal e artística. 

Antes de decidir avançar para este filme, qual era a sua relação em relação à figura e trabalho de Samuel Beckett?

No que diz respeito à pessoa, não sabia muito. Já conhecia o seu trabalho literário, pois estudei literatura inglesa. Porém, como estudante, nunca aprofundei muito o estudo sobre ele. Na verdade, a sua figura interessou-me mais quando cheguei à meia idade, e não tanto quando era jovem. Foi durante a pandemia que esse interesse particular chegou, num período particular para todos nós. 

Optou separar o filme por capítulos, com o nome das mulheres que foram passando pela vida dele. Porquê essa opção?

Queria dar ao filme um tom mais formal, como um livro, mas não apenas dar uma espécie de título a cada episódio da sua vida. Queria realçar as relações que o Beckett teve em determinado período da sua vida, a maioria das quais com mulheres. Foi uma escolha simples de fazer, sinceramente.

E por falar nessas relações, o filme realça, até por uma cena no fim, a forma como a relação do Beckett com a mãe influenciou todos os seus outros relacionamentos.

No nosso filme sim, certamente. Na vida real, não sei se foi assim. O que sei, a partir da sua biografia, é que a mãe dele era alguém difícil de lidar, repleta de conflitos que a tornavam alguém complicado de comunicar, gerando assim muitas más interpretações. Creio que isso é evidente e ressoa em qualquer pessoa. Se a relação com a tua mãe é complicada, aquela que seria por natureza a tua ligação mais forte, os restantes relacionamentos serão difíceis de gerir. Não faço, porém, uma ligação direta entre essa relação e a forma como ele lida com as outras mulheres da sua vida. Mas, nessas relações, a sua abordagem foi sempre passiva. Eram elas que começavam os relacionamentos e tentavam controlar as coisas. Mas claro, isto pode ser apenas uma especulação minha.

No final, todos estes relacionamentos trazem à tona arrependimentos e culpa. Incluindo o relacionamento que teve com a sua mãe. O grande plano desta história é um homem ao longo da vida com os seus erros. E esses erros envolvem o seu relacionamento com as mulheres. Isto para mim é algo muito honesto na sua vida. 

Num filme como este, ou naquele que fez em torno do Stephen Hawking, investigou muito sobre as personalidades em questão para as replicar no grande ecrã?

Até certo ponto investiguei, mas a ideia é sempre criar uma versão dessas vidas. Nos documentários, a investigação é fulcral. Na verdade, com exceção de um deles, todas as minhas ficções foram baseadas em histórias verdadeiras. Sendo histórias que aconteceram, existe sempre muito material que podes ler. Para o Beckett li uma biografia, “Damned to Fame: The Life of Samuel Beckett”, além das obras que escreveu e algumas peças. Mas, apesar de isso ajudar, sempre quis transformar este filme em algo meu, vindo do meu pensamento.

E como foi a preparação do Gabriel Byrne para o papel? É alguém que diz a um ator o que pretende ou deixa para ele essa tarefa de vestir a pele de alguém?

Quando li o guião, a primeira pessoa que ficou verdadeiramente concreta na minha mente para o papel foi o David. O meu pensamento era: se ele aceitar o papel, faço o filme. Se ele recusar, provavelmente não o faria. Felizmente aceitou e tivemos inúmeras conversas interessantes sobre a personagem.

Para mim, o casting é das coisas mais importantes num filme.  Depois de escolher o ator, o resto do trabalho é com eles, pelo menos até certo ponto. Metade do meu trabalho está no processo de casting, pois aceitas as ideias que te propõem e fazes uma filtragem delas. Neste caso, o David e eu tínhamos ideias parecidas. Por exemplo, não queríamos uma personificação física à letra como vemos atualmente na maioria das cinebiografias hoje em dia. No nosso caso, preferimos uma abordagem mais clássica, em que damos os óculos, o chapéu, etc, mas não tentamos mimicar ao pormenor em termos de aspeto físico. Queríamos antes transportar o espírito daquelas épocas. (…) Não sou um realizador que direciona os seus atores para algo. Trato tudo como uma colaboração. A melhor maneira de trabalhar com os atores é confiar neles, ajudá-los e apoiá-los, em oposição a apenas lhes dizer o que têm de fazer.

Existem duas frases-chave no filme. Uma, claro está, é o “que catástrofe”, quando Beckett ganha o Nobel. A outra é quando ele diz à mulher que “não merece o prémio”, ao que ela responde: “Tu não mereces, mas o teu trabalho sim”. Hoje em dia fala-se muito desta questão, de separar o autor da obra. Como aborda e olha para esta questã?

É algo muito complexo e difícil. Por exemplo, temos cineastas com obras maravilhosas, mas depois descobres pormenores escabrosos das suas vidas e isso pode alterar a visão que tens sobre a sua obras. No meu caso, na maioria das vezes, e até certo ponto, consigo separar o autor da obra. Mas há um ponto em que já não consigo dissociar as duas coisas. Há muitas pessoas cujas vidas não servem de exemplo a ninguém, mas cuja obra é requintada, primorosa e muitas vezes até humana. Reconciliar estas duas coisas, obra e autor, é complexo e, no caso do Beckett, ele estava muito ciente dos seus erros e fala muito da vergonha e culpa. Na verdade, ele sente uma enorme agonia pelos seus erros e o filme estrutura-se a partir disso.

Gabriel Byrne é Samuel Beckett em “Dance First

Outra característica do Beckett era a frontalidade. Tenho falado com muitos argumentistas e todos eles sentem uma pressão cada vez maior sobre o que podem ou não escrever, com medo da cultura do cancelamento. Isto não é apenas nos filmes, mas na sua interação diária, por exemplo, nas redes sociais. Como vê essa questão?

Sim, é assim, e é uma pena porque tens sempre de prever e antecipar o impacto das tuas palavras. Isso é mais complexo à medida que as pessoas envelhecem e é a nova geração que reinventa formas, valores, éticas e formas de conduta. É isso que está a acontecer atualmente e têm o direito de fazer isso. Eles querem mudar o mundo e acreditam que conseguem, mas – nesse processo – as mudanças são difíceis de aceitar pelos mais velhos que são forçados a pensar de forma diferente sobre a sexualidade e política. É um processo natural, mas cria um dilema interessante para quem escreve. Por exemplo, conseguimos separar o Picasso do seu trabalho?

Antes de embarcar neste “Dança primeiro. Pensa depois” esteve envolvido num documentário que teve de abandonar. Pode explicar o que aconteceu?

Sim, mas esse documentário avançou com outra pessoa na realização. É sobre um jovem cristão americano que viajar para uma região tribal e quer pregar o evangelho para culturas que nunca tiveram contacto com a civilização ocidental. Ele foi lá umas quantas vezes, mas acabou morto. O problema quando me envolvi no projeto foi o timing. Era muito cedo para falar disso e ninguém queria comentar o que aconteceu. Infelizmente tive de sair de cena, mas dois anos depois conseguiram fazer o filme.

É mais difícil hoje em dia conseguir financiamento para fazer um filme ou com o streaming as coisas melhoraram?

Melhoraram para quem quer fazer um certo tipo de filmes, mas fazer algo como este “Dança Primeiro. Pensa Depois” é muito complicado. Ninguém quer avançar e financiar. Este é um filme de baixo-orçamento e modesto. Na verdade, este género de filmes é que sofre um grande apertão no mercado atual, pois ninguém sabe bem o que fazer com eles.

Creio que o cinema vai sobreviver à invasão do streaming, pois se olharmos para as origens do contar histórias, elas eram num lugar escuro onde todos se reuniam para as ouvir. O cinema é isso. Como vai sobreviver não sei, nem a dimensão que terá, mas vai continuar a existir.

Já tem na agenda um novo filme, “Night Boat to Tangier”.

Sim, é o meu próximo projeto. Gostei muito do livro e já o tinha lido antes do guião chegar até mim. Conheço o produtor muito bem. É meu amigo e trabalhei com ele, há muitos anos, na BBC, e estamos a reunir um elenco muito interessante [Michael Fassbender, Domhnall Gleeson, Ruth Negga]

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