Quinta-feira, 9 Maio

“Precisamos de ideias ‘out of the box-office’ em Portugal”, diz Edgar Pêra

Apresentado à cinefilia internacional em janeiro, durante o Festival de Roterdão, na Holanda, “The Nothingness Club – Não Sou Nada“, de Edgar Pêra, faz uma excursão pelo Brasil, na Mostra de São Paulo, antes de chegar a Portugal.

Dono de uma obra plural, que vai do filme de género a experiências narrativas, o realizador de “O Barão” (2011) vai levar as plateias ao desassossego ao desbravar o imaginário do poeta Fernando Pessoa (1888-1935). A trama é um triller psicológico que decorre dentro da cabeça do autor de “Tabacaria“, no qual escreve “Não sou nada./ Nunca serei nada./ Não posso querer ser nada./À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo“.

No seu Clube do Nada, habitado por vários heterónimos, o poeta (vivido por Miguel Borges) consegue concretizar todos os seus sonhos. Mas a entrada em cena de uma mulher sofisticada (Victória Guerra), muito diferente da Ofélia do mundo real, começa a desestabilizar o clube, enquanto o ultrajante heterónimo vanguardista Álvaro de Campos (papel de um inspirado Albano Jerónimo) disputa a autoridade de Pessoa de forma violenta. A produção é do também cineasta Rodrigo Areias (de “Hálito Azul“).

Que lugar o feminino ocupa em “Não Sou Nada” a partir da Ofélia de Victória Guerra?
Ofélia é o antivírus que vai para o Nothingness Club para desfragmentar a cabeça de Fernando Pessoa. Tivemos também muitas conversas preparatórias e foi das poucas vezes que dei um ator referências de filmes, sobretudo do filme noir (“Gun Crazy“, “Big Sleep” mas também “Body Heat“), porque queria que a personagem de enfermeira – ainda colada à Ofelinha original – se transformasse numa femme fatale. Mas esta Super-Ofélia nunca diz um único texto retirado das cartas de Ophelia Queiroz. Tudo é texto do próprio Pessoa, o que funciona também como um espelho narcísico de Pessoa. Qual é o espaço para o amor quando alguém vive uma vida dedicado a uma atividade (não terá de ser artística)? Essa é uma das principais questões do filme, apesar de só ter me apercebido realmente disso durante a montagem.

Qual é a expetativa para a estreia em Portugal e que cena tu encontras num mercado como o do teu país, que, embora pequeno, parte de um coeficiente de produções autorais?
Há muito tempo que digo que não precisamos só de ideias “out of the box” mas de ideias “out of the box-office”. Felizmente, em Portugal, ainda temos um sistema que pensa mais no futuro dos filmes do que nas pipocas. No caso deste filme, no entanto, dado o objetivo de dar a conhecer a obra de Pessoa, gostaria que o máximo número de pessoas visse o filme. Mas não só no presente como no futuro.

Desde as suas primeiras operações com cinema, nos anos 1980, o que te parece, de modo consciente, o eixo autoral dos seus filmes?
De modo consciente, não faço a mínima ideia: por muito que trabalhe previamente conceitos, durante as rodagens, sigo a minha intuição apenas. Uma vez, um assistente de realização disse-me que nunca tinha conhecido um realizador que confiasse tanto na sua intuição. Respondi-lhe que provavelmente nunca tinha conhecido um cineasta que duvidasse tanto da sua inteligência.

O que vem pela frente na tua obra?
O futuro é sempre o presente para mim. Em 9 de Setembro de 2022, comecei a trabalhar com imagens IA – a que eu chamo de inteligência animal. Isso porque (por enquanto) a IA é baseada apenas numa base de dados criada por humanos. Terminámos recentemente o videoclip “Losers“, do Legendary Tigerman. Ele foi integralmente realizado através de IA. Seria impossível criar um filme apocalíptico low budget em que Nova Iorque, Paris, Lisboa e Seoul são os cenários. Esta é a fase ideal para criar em IA, porque gosto de abraçar o inesperado. Essa ainda é uma constante, para além de que, há momentos em que parece que estou a filmar em VHS. Vejo a IA como um novo brinquedo, uma nova ferramenta para explorar outros meios. Dito isto, nunca irei trabalhar com menos pessoas por causa da IA. Aliás, cada especialista irá dar instruções muito mais precisas para a criação de imagens. Estamos agora a terminar um filme – “Cartas Telepáticas” – em que todas as imagens são IA. As vozes, no entanto, são de atores. Fala sobre as afinidades entre Pessoa e Lovecraft, dois escritores omnipresentes na minha cinematografia, e que viveram na mesma época. Ambos publicaram apenas um livro em (fim de) vida e, hoje, têm milhares de fãs. Seguir-se-á uma longa-metragem sobre o terrorismo em Portugal nos anos 80, de uma perspectiva muito pessoal, cruzando autobiografia com ficção.

Notícias