Domingo, 5 Maio

Marão estreia “Bizarros Peixes Das Fossas Abissais” na Monstra| Festival de Animação de Lisboa

Quase dez anos se passaram desde que as primeiras sequências de Bizarros Peixes Das Fossas Abissais, espécie de comédia existencialista de super-heróis ou de aventuras metafísicas, que começaram a sair do papel, marcando a entrada definitiva do mais popular dos animadores do Brasil, Marão, na seara das longas-metragens. As suas curta, sobretudo Até a China (2015) e Eu Queria Ser Um Monstro(2010), ganharam prémios no mundo todo, garantindo a ele o apelido de “Walt Disney de Nilópolis”, em referência à região da Baixada Fluminense de onde vem. Nesta quinta-feira, a espera pela trama mucho loca (sobre uma jovem que ao gritar “Minha Bunda É Um Gorila!” vê os seus glúteos se transformarem num gorila) chega ao fim, ao menos para o público de Lisboa. Às 19h30, o filme será exibido no UCI El Corte Inglés, na MONSTRA | Festival de Animação de Lisboa. Na entrevista a seguir, Marão explica como é o processo de animar no seu país.  

Egresso de Nilópolis, município do Rio de Janeiro, o cineasta Marcelo Marão chegou aos 51 anos com uma obra de curtas animadas mundialmente premiada

Como avalia o processo de produção de uma longa (quase artesanal, n sua coinfecção, com equipa pequena, de amigos) no cenário atual da animação brasileira?

Estou hoje com 51 anos. Rodei catorze filmes da década de 1990 para cá, todas curtas, que participaram de 634 festivais em mais de quarenta países, tendo recebido 120 prémios. Mas eu nunca havia feito uma longa. Nunca havia trabalhado em longas-metragens. Sobrevivi exclusivamente de animação fazendo trabalhos encomendados e ministrando aulas. Fazia isso para poder, em paralelo, dedicar-me ao que me é mais caro e importante: escrever, dirigir e animar curtas autorais. Embora tenha acabado de finalizar uma longa-metragem, sempre considerei a curta-metragem o formato mais nobre da animação mundial. Deste modo, produzi a minha primeira longa com a mesma lógica das curtas: sem model sheet, sem storyboard e sem animatic, improvisando as cenas de um modo teatral, em ordem cronológica. A primeira cena do filme foi a primeira a ser animada e a última foi a última a ser animada. A narrativa e o design dos personagens evoluíam à medida que o filme avançava, assim como uma graphic novel autoral, na qual o design do personagem se altera com o passar das páginas. E eu não queria “dirigir” enquanto uma equipa animava e desenhava. Eu queria desenhar e animar também, de preferência a maior parte do filme. Essa é a etapa mais divertida! Fiz centenas de milhares de desenhos a lápis no papel. A pilha ao lado da minha mesa de luz é consideravelmente mais alta do que eu. Para isso, montei uma pequena equipa formada apenas de pessoas que eu amo.

Existe uma indústria nesse setor?
Durante o primeiro século da produção de animação no Brasil foram realizados menos de 50 longas-metragens animadas. No ano passado – ineditamente – mais de 15 foram finalizadas! Nunca havia acontecido isso antes na História do Brasil. Isso significa que a logística estratégica criativa e de execução são muito recentes e tentativas idiossincráticas que não emulam o processo americano ou europeu ou asiático. São processos novos específicos para a realidade nacional dos profissionais formados – academicamente ou de modo autodidata – nas últimas décadas. Após noventa anos produzindo heroicamente curtas pontuais e gerando comercialmente animações publicitarias (estas basicamente exclusivas de produtoras de São Paulo), raras longas e praticamente nenhuma série saíam do papel. Nos últimos quinze anos, a produção de animação brasileira cresceu em progressão geométrica, de modo distinto de qualquer outra faceta do audiovisual nacional. Hoje há mais de quarenta longas sendo produzidos em todas as cinco regiões do Brasil e existem mais de sessenta series animadas em exibição na TV e em streamings (sendo o número total ainda superior, estas são apenas as que estão no ar no momento). Hoje, há a possibilidade de formação académica em múltiplas faculdades, universidades e cursos livres. Isso aconteceu graças a múltiplos fatores, entre os quais se destacam a essencial janela de exibição que foi o festival Anima Mundi, interrompido na gestão de Bolsonaro, e a união dos profissionais como entidade de classe, a ABCA (Associação Brasileira de Cinema de Animação).

A heroína de “Bizarros Peixes das Fossas Abissais”: quinta na MONSTRA

A animação no Brasil começou em 1917, com a curta “O Kaiser“, hoje dada como perdida. Desde então algum problema essencial à feitura de filmes animados se mantém?
O problema fundamental e reincidente nunca teve a ver com capacidade criativa nem técnica dos profissionais/aspirantes brasileiros: sempre foi vinculada a dificuldade pecuniária. A treta maior sempre foi conseguir apoio e fomento para produzir. Mesmo com orçamentos mínimos (e muitas vezes sem aporte algum) longas e curtas foram produzidas, exibidas e premiadas em festivais do mundo todo nas últimas décadas. A grande diferença em se produzir com aporte financeiro e a possibilidade de abdicar de alguns trabalhos encomendados para se dedicar ao autoral, o que torna o resultado demasiadamente distinto. O desgoverno anterior – avesso à cultura e à ciência – tentou eviscerar a nossa espécie, suspendendo ou extinguindo quase todos os mecanismos de fomento audiovisuais/culturais, mas foi temporário. Hoje o Brasil volta a apoiar e incentivar a cultura e a animação.

Como foi feita a escolha o de vozes que te trouxe estrelas como Natalia Lage e Rodrigo Santoro, além do mestre da dobragem brasileira, Guilherme Briggs?
Na maioria dos meus filmes, havia poucas vozes (e algumas vezes era uma narrativa autobiográfica, onde eu mesmo narrava experiências pessoais), mas sempre fui fascinado pela performance de corpo e de voz de atrizes e atores. Fascinado! Ao desenhar o movimento, o animador atua com o lápis, mas seguindo decisões e ideias cénicas de interpretações. As minhas inspirações e aprendizagem para animar não vem só de quadrinhos e filmes animados, mas muito vem do cinema live action e do teatro. E no caso das vozes, inclui este aspeto que definiu a composição da equipa: todos no filme tem envolvimento afetivo com a minha vida profissional em alguma instancia. Briggs é um génio da voz, que dublou/dobrou grandes personagens na animação, como Buzz Lightyear. Natalia Lage é uma atriz que iniciou a carreira protagonizado telenovela aos oito anos de idade. Era uma atriz-mirim. Fazia parte das minhas referências cénicas desde sempre. E foi ela que me entrevistou em um programa sobre cinema brasileiro sobre a minha carreira na época em que a longa ainda era um projeto. Já Rodrigo Santoro é um dos melhores e mais incríveis atores brasileiros, cuja participação aconteceu graças ao carinho e generosidade que o cineasta Luiz Bolognesi, realizador de “História de Amor e Fúria”, sempre teve com meu trabalho e que agradeço imensamente. Rodrigo trabalhou com ele naquela animação premiada em Annecy e faz a voz de uma tartaruga no meu filme, mas o faz com a voz de um urso de meia idade de trezentos quilos.

Uma das criaturas marinhas , animada por uma equipa pequena, ao longo de dez anos

Qual é o simbolismo de iniciar a carreira mundial do seu filme via Monstra, zarpando de Portugal? Qual é a sua conexão com os animadores lusitanos?
Fico muito honrado e orgulhoso pela estreia da nossa longa-metragem, após cerca de dez anos de árdua produção, acontecer em um dos mais importantes festivais de animação do mundo. E isso se passa justamente no ano em que a animação portuguesa celebra um século, em um festival munido de espetaculares convidados da história mundial do setor. Participei algumas vezes da MONSTRA com as minhas curtas. Inclusive, uma delas, “Eu Queria Ser Um Monstro”, fez parte de uma coletânea em DVD de “Melhores do Festival”, há alguns anos. Nunca havia tido a oportunidade de estar presente ao evento, lacuna que será sanada hoje: escrevo enquanto estou de comboio na conexão a caminho de Lisboa!  Admiro muitíssimo as realizadoras e os realizadores portugueses tanto pelos bombásticos filmes que vi no Anima Mundi durante as últimas quase três decadas, assim como pela gentil participação deles no evento O Dia da Animação no Brasil. Desde 2004, realizamos ao 28 de outubro uma sessão que, hoje, é o maior evento de exibição simultâneo de animação do mundo, ocorrendo concomitantemente em mais de duzentos municípios brasileiros. A sessão tem sempre entrada franca, como intuito de formação de publico.

Qual foi o tamanho da tua equipa? Quanto tempo levou o processo? Que orçamento teve?
Ao invés de quatrocentos animadores, fomos Rosaria, Fernando Miller e eu a animar o filme em 2D tradicional / full animation por seis anos. Antes disso, foram quase quatro anos para captação de recursos. Isso dá praticamente dez anos, no total. A equipa foi formada intencional e exclusivamente por pessoas que amo e com quem já trabalhava há anos (ou décadas). Leticia Friedrich como produtora; Duda Larson na banda-sonora; Alessandro Monnerat e Yohana Lazarova na edição/composição; Silvana Andrade na pintura; Wesley Rodrigues (junto com Carlos D e Rosaria e eu) nos cenários. Comparativamente à última longa da Pixar ou Disney, o nosso orçamento total seria o equivalente a nove segundos do filme deles. Com o nosso budget total, poderíamos fazer nove segundos de um longa-metragem da Pixar. Não daria para fazer nem dez segundos; apenas nove!

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