Domingo, 19 Maio

“Ice Merchants” e como a animação portuguesa “está imparável”

Já com duas curtas-metragens na bagagem, “The Voyager” e “Nestor”, o português João Gonzalez chegou este ano ao Festival de Cannes através do seu mais recente filme, “Ice Merchants”,  uma pepita de animação na qual seguimos um pai e um filho que vivem numa casa no alto de um precipício, e que saltam de pára-quedas todos os dias para irem à aldeia na planície abaixo, onde vendem o gelo que produzem durante a noite.

Premiado na Semana da Crítica, o filme foi exibido esta semana no Curtas Vila do Conde, de onde sairia com mais dois prémios, incluindo o de melhor filme da competição nacional. Foi lá que nos encontrámos com João Gonzalez e falámos da sua carreira e do futuro.

João Gonzalez

Ice Merchants” estreou na Semana da Crítica, como foi essa experiência em Cannes?

Foi incrível, honestamente. Eu estava com algum receio de Cannes ser algo tão grande que as curtas-metragens se perdessem um pouco, mas das três grandes secções do Festival – Palma de Ouro, Quinzena dos Realizadores e Semana da Crítica – esta última era a que dava mais atenção às curtas, inclusivamente exibiam-nas várias vezes e até em horário nobre. As curtas não estavam numa sessão apenas de manhã, como acontece nalguns casos. Fiquei muito satisfeito, não só com a distinção [que recebi lá], mas porque ela chegou ao público e tocou algumas pessoas. 

A Laura Gonçalves contou-me que quando esteve com uma curta de animação em Cannes há uns anos, na Quinzena, alguns realizadores ainda olhavam para ela com aquele ar de “o teu filme é de animação” [como se fosse de segunda linha]. Não sentiste em nenhum momento esse tratamento?

Senti que este ano as coisas mudaram ligeiramente. Há uma aspeto interessante, existe sempre essa questão da animação nunca ter tanta representação como a imagem real, é um facto em termos numéricos, mas é engraçado que em termos de reacção do público em cada sessão esses filmes costumam ser os favoritos. Existiam mais duas animações nessa competição e para mim foram as minhas preferidas. Falando com o público senti o mesmo. Acho que lentamente as coisas estão a mudar, mas obviamente que há sempre aquela ideia pré-estabelecida em relação ao cinema de animação.

E como é que chegou até ti esta paixão pelo cinema de animação?

O meu percurso é um bocado atípico, pois isto nunca foi uma coisa que ponderei fazer quando era miúdo. O meu primeiro contacto com as artes foi com o piano, quando era criança. O meu pai era pianista e comecei a tocar muito cedo, com quatro/cinco anos. Durante a minha infância sempre tive uma grande ligação com as artes visuais, o desenho, a ilustração, etc, mas acabei o 9º ano e decidi seguir os meus amigos. Eles foram todos para ciências e eu também. Tive assim 3 ou 4 anos sem qualquer contacto com as artes: nem com o piano, nem com a ilustração ou o desenho. Aliás, já tinha desistido do piano com 13/14 anos… aquela fase normal dos adolescentes. (risos) Na altura queria ser jogador de voleibol, o que tem imensa piada agora (risos). 

O que aconteceu depois é que fui para uma Licenciatura Multimédia, que agora funciona aqui em Vila do Conde, no ESMAD. Entrei nesse curso porque não consegui entrar em Engenharia Informática (risos). O que me atraiu nesse curso foram as cadeiras de programação. O meu plano era ficar lá um ano e depois voltar a me candidatar. Mas durante esse ano percebi algo muito importante: sou uma miséria na programação. Ainda bem que não forcei porque ia ser um Engenheiro terrível. 

Foi nessa altura que me apercebi que o que gostava de fazer estava relacionado com as artes. Esse curso de Multimédia era muito dinâmico, com muitas disciplinas diferentes (vídeo, fotografia, programação e animação, etc). Foi aí que percebi que gostava muito de animação. No entanto, até ao terceiro ano, no qual fiz o meu projeto “The Voyager”, no qual me comprometi a fazer também a banda-sonora e tocá-la ao vivo, o meu plano era só acabar a licenciatura e seguir piano.  Mas durante esse processo percebi mesmo que adorei a parte de realização e da animação. Continuei a estudar piano independentemente disso, tocando em casa e compondo bandas-sonoras, e estudei animação mais afincadamente. Agora junto as duas áreas, que é o que gosto de fazer. 

A ideia para este “Ice Merchants” surgiu-te  num sonho. Como é que foi esse processo de criação, do sonho até aqui?

Todos os meus filmes têm uma particularidade: o cenário é sempre muito importante. Na verdade, é quase sempre uma luta entre uma personagem e o cenário, o qual trato também como personagem. O que faço é desenvolver e escrever as regras daquela realidade. E essas realidades partem de imagens que me vêm à cabeça, às vezes em sonhos,ou  quando estou a adormecer, e até durante o dia. Neste caso era uma casa à beira de um precipício, mas tinha uma estética diferente na altura. Depois desse momento, passei dois meses a desenhar e a escrever as regras dessa realidade, ou seja, onde o filme se ia desenrolar. Depois, como já tenho esse cenário firme na minha cabeça, começam a surgir ideias para a narrativa, sempre condicionadas perante esse cenário. Aqui, tinha uma casa num precipício, surgindo na mente questões de como é que uma personagem podia sobreviver ali. É aí que surgiu a parte do gelo. Daí passei para a aldeia lá baixo, a forma como se deslocam da casa para essa aldeia (a ideia do paraquedas). Estas ideias vão surgindo assim às gotas, é um processo de descoberta.

E nesse momento surgem também as opções técnicas, ou seja, o tipo de animação que queres fazer?

Essa escolha surge quando estou a desenvolver o cenário. Estes meses iniciais são os mais empolgantes para mim, quando está tudo em aberto e estou a descobrir uma janela para uma realidade que não existe. Depois a narrativa vai-se desvendando, mas chego a um ponto em que às vezes tenho 3 ou 4 narrativas e personagens diferentes. Para mim é mais simples assim, pois vou-me limitando através das condicionantes do espaço, como o facto destas personagens sobreviverem a vender gelo. 

Normalmente, as minhas narrativas tocam em pontos pessoais. As minhas primeiras 2 curtas abordam temas da psicologia com os quais me enquadro. Já esta foi um salto mais à frente, pois aborda uma história a partir da perspectiva de um pai. Mas fala de solidão, fala de perda, coisas que todos já sentimos e que nós, realizadores, procuramos abordar arranjando metáforas…

E esse sonho que tiveste tinha as cores que usaste no filme? (risos) O curioso é que usa cores e tons que normalmente não são utilizados para zonas gélidas, como os laranjas…

As cores não me surgem nos sonhos, são algo que vou desenvolvendo ao longo do projeto. Neste caso o laranja era usado como um contraste do aconchego, daquela zona segura com o azul gélido. As minhas cores são das coisas mais importantes no processo e passo muito tempo a pensar nelas. As minhas paletes são sempre muito simples mas, até acertar no tom que mais me agrada, demoro os tais dois meses da pré-produção. Todos dias vou acertando e nivelando até acertar.

O teu filme anterior, o “Nestor”, esteve em 97 festivais de cinema, segundo a Agência da Curta-Metragem. Presumo que viajes com elas a muitos desses festivais. Como é o teu crescimento como autor no contacto com outros nomes do cinema de animação que encontras lá fora? Sentes que tem havido um crescimento por causa disso?

Sim, sem dúvida. Já fiz contatos incríveis. Viajei mais com o meu primeiro filme, o “The Voyager”, que com o “Nestor”. Tudo por causa da pandemia. O “Nestor” entrou alguns festivais que gostava mesmo de ir e não pude. A maior “facada” que me deram foi não poder ter ido ao Festival de Animação de Tóquio, que era um sonho. Eles ofereciam tudo mas cancelaram uma semana antes por causa da pandemia. Outro dos que não pude ir foi ao de Melbourne, na Austrália. Não pude ir com o “Nestor,” mas ficámos a saber há uma semana que vou lá com o “Ice Merchants”. 

E já tens alguma ideia para uma longa-metragem? Tens algo em desenvolvimento?

Normalmente fazem-me essa pergunta, mas neste momento não tenho nenhum argumento para uma longa-metragem. Tenho ideias e tenho imagens que um dia podem ser desenvolvidas.

Mas é um objectivo de carreira?

Não necessariamente. Bem, adorava fazer uma longa-metragem, mas não quero em momento algum fazer uma para dizer que fiz. O meu objetivo é sempre meter as minhas ideias no papel e no ecrã. Se algum dia tiver uma ideia que faça sentido, faço uma longa-metragem. Se continuar a ter ideias que penso que se traduzem melhor no formato curta, continuarei a fazê-las. O nosso principal objectivo é encontrarmos o meio e a duração perfeita para contar as nossas histórias. E se algum dia tiver uma ideia que até ache que funciona melhor em imagem real, vou lutar por ela. 

Quando falas em imagem real, é mesmo isso, ou um híbrido, imagem real e animação?

Não. Pode mesmo ser em imagem real apenas, embora não tenha experiência nenhuma, nem confie nas minhas capacidades de direção de atores. Não acho a animação superior a imagem real, ou vice versa. Apenas há coisas que resultam melhor num meio e outras noutro. Por isso, se tiver uma ideia que não valha a penas forçar em animar, contacto outros realizadores e faço em imagem real. 

E qual é a importância de estar aqui em Vila do Conde com o teu filme no Curtas?

É incrível. Não apenas pelo prestígio, mas tem um cariz muito pessoal. Foi aqui que comecei a ver curtas-metragens quando era miúdo. Aliás, lembro-me da primeira curta-metragem que vi, tinha 8 ou 9 anos, e foi na sala 2 do Teatro Municipal. É algo que nunca me esqueci.

O Curtas Vila do Conde faz parte do teu processo de formação?

Completamente. Há todo um carácter simbólico de estar aqui e que me toca bastante. 

Existe algum nome do cinema de animação que te sirva de influência?

Não sei, mas tudo o que está neste momento a ser feito em Portugal inspira-me imenso. A nossa animação está imparável, não só pelas longas-metragens que lançámos este ano [Os Demónios do Meu Avô; Nayola], mas também as curtas: “O Homem do Lixo”, o “Garrano”, o “Casaco Rosa”. Tudo o que está a ser feito é genial e isso dá-me muita força. Não consigo dizer assim nome…

Hayo Miyazaki?

Claro, é uma das grandes inspirações pois explora muito algo que considero muito importante: o world building, ou seja, a criação da realidade. É quase uma imersão na cabeça dele e isso, para mim, é uma prioridade quando estou a fazer um filme. Mas não sei. Vou fazendo o meu caminho, vendo o que é que vem. Obviamente estamos muito felizes com a receção que o nosso filme está a ter. Sou muito privilegiado em trabalhar com a equipa que tenho. Foi uma equipa pequena, mas é tudo gente genial. 

E ainda há lugar para a música na tua vida?

Sim. Continuo a juntar as duas vertentes através da banda-sonora, com o auxílio do Nuno Lobo, que é orquestrador e ajudou-me na transposição para vários instrumentos. Até agora só tinha composto para um instrumento e neste caso senti o apoio dele nessa transposição para outros. E, claro, dos músicos que trabalharam connosco, os quais fizeram um trabalho excelente. 

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