Terça-feira, 14 Maio

Paolo di Paolo: Era uma vez um fotógrafo de exceção

Aos 97 anos, Paolo di Paolo tem o que podemos chamar de uma segunda vida. Depois de nos anos 1950 e 1960 ter fotografado algumas das personalidades-chave da arte, moda e cinema, além de inúmeras fotorreportagens para jornais como Il Mundo, viu-se forçado a abandonar a profissão devido à mudança dos tempos e às novas exigências editoriais.

As publicações em que trabalhava fecharam e só lhe restavam dois caminhos: ou seguia a moda dos paparazzi e começava a tirar “fotos picantes”, ou abandonava de todo a sua carreira. Escolheu a segunda via, deixando para trás uma riqueza incontestável, materializada num espólio fotográfico único.

Só muitos anos depois, e por insistência (e descoberta das fotografias) por parte da sua filha, Silvia de Paolo, o antigo fotógrafo acedeu em divulgar o seu trabalho novamente. E algum desse trabalho pode ser visto em Lisboa, na Sociedade Nacional de Belas-Artes, na exposição ‘La lunga strada di sabbia‘ (24 março- 16 abril). São cerca de sessenta fotografias, com a curadoria de Silvia Di Paolo, que estão em exibição ao lado de frases escritas por Pier Paolo Pasolini, com quem o fotógrafo atravessou Itália ao longo da costa, ainda antes dele se aventurar no cinema.

Mas além desta exposição, a vida, trabalho e obra de Paolo di Paolo também pode ser seguida em “The Treasure of His Youth: The Photographs of Paolo Di Paolo”, um documentário de Bruce Weber que, depois de estrear no último Festival de Roma (no final de outubro), foi exibido recentemente no CPH:DOX.

Foi por ocasião dessa exibição na Dinamarca e exposição em Lisboa que nos sentámos à mesa com Paolo di Paolo e Sílvia de Paolo. Uma conversa que podem acompanhar abaixo.

Como nasceu esta exposição de fotografia ‘La lunga strada di sabbia’?

Silvia de Paolo- Fizemos esta exibição em Milão, no ano passado, por ocasião das celebrações do centenário do nascimento de Pasolini. Depois, aqui de Lisboa questionaram sobre essa exposição. Existiam muitas fotos por onde escolher, pois o Paolo e o Pasolini passaram muito tempo juntos. Já foi difícil em Milão escolher 100 dessas fotos para a exposição, e como em Lisboa o espaço para a exposição era ainda mais reduzido, a seleção foi ainda mais complexa. Acabámos por escolher aquelas que achávamos que eram as mais fortes e emblemáticas, percorrendo o itinerário que os dois fizeram por Itália. Depois, fizemos o casamento das imagens do Paolo e as palavras do Pasolini.

Pier Paolo Pasolini © Paolo Di Paolo

Esta não foi certamente a primeira vez que veio a Lisboa e Portugal. Que memórias tem da primeira vez que cá veio?

Paolo di Paolo – A primeira vez foi em 1957 ou 1958, vim fotografar o último Rei de Itália, Humberto II, que estava em Cascais. Fui recebido com um protocolo tremendo para tirar fotografias ao Rei, não só de segurança, mas também na terminologia que teria de usar para me dirigir a ele. Tinha de o tratar por majestade, etc. Lembro-me que a certa altura mandei o Rei sentar-se algures entre os arbustos e a pessoa responsável por todo o protocolo chamou-me de louco. Depois disso, tive em Coimbra, uma bela cidade universitária, cheia de estudantes, e no Porto, onde fui ver onde o bisavô do Rei, Carlos Alberto [da Sardenha], morreu em 1849.

E alguma vez imaginou que um dia iam fazer um documentário em torno do si?

Paolo di Paolo – Nunca esperei nada disto. Nos últimos tempos, todos os dias têm sido surpreendentes. A começar por quando começaram a dizer que eu era um grande fotógrafo (risos). Originalmente, queria ser professor de filosofia, por isso nunca me vi sequer como fotógrafo. Mas interiormente nunca me convenci da filosofia. Sou de uma geração que tinha 20 anos quando a Segunda Guerra Mundial terminou. Ninguém da minha geração sabia nada sobre o futuro. Quando estávamos no fascismo era impossível sonhar ou fantasiar a longo prazo. Mas quando encontras uma nova vida, longe do fascismo, encontras a energia para fazer algo de novo. Naquele tempo, éramos cinco ou seis fotógrafos a trabalhar para o Il Mundo, mas nenhum tinha a fotografia como profissão. Éramos todos amadores. Um era notário, outro médico, e por aí fora. Só mais tarde nos consideramos realmente fotógrafos.

Quando era jovem também pintava, por isso já tinha um fascínio por imagens. Mas quando tive a oportunidade de desenvolver a paixão pela fotografia, fi-lo – tal como todos – de uma forma humilde.

E todos vocês partilhavam da ideia que uma fotografia tinha de contar uma história e não servir apenas como complemento ao texto que surgia no jornal…

Paolo di Paolo – Sim. Todos os profissionais da época nunca nos consideraram fotógrafos reais. Por isso mesmo, escondíamos as câmaras no bolso quando íamos fotografar algo e toda a gente, incluindo os atores, tinham uma postura diferente connosco. Por exemplo, quando uma grande estrela estava em Roma, havia uma fila dupla de fotógrafos para captar imagens. Quando eu chegava lá com a minha câmara, todos gozavam comigo. Éramos vistos como uma categoria diferente. Os outros fotógrafos profissionais e os paparazzi eram figuras, no espírito, muito diferentes de nós.

© Paolo Di Paolo  (CORTESIA COLLEZIONE FOTOGRAFIA MAXXI)

Um dos últimos trabalhos que fiz foi com uma jornalista de moda muito famosa na época, a Irene Brin. Ela era extremamente sofisticada, só queria trabalhar com fotógrafos internacionais e felizmente também comigo. Ela sentia que havia em mim uma sensibilidade diferente em relação aos outros fotógrafos profissionais da época. O mesmo aconteceu com o Ezra Pound, que quando me encontrou no Festival dei Due Mondi di Spoleto disse que só queria ser fotografado por mim. Fui à casa que o festival lhe providenciou, uma habitação humilde. Ele era alguém silencioso e por isso fui muito discreto a tirar as fotografias. Ele nem interagia. Acabei por lhe tirar uma fotografia, no meio daquela casa modesta, em que parece uma múmia (risos).

Foram tempos muito bons e abandonar esta profissão foi muito difícil e doloroso para mim. A cena italiana no que diz respeito à fotografia mudou completamente. Quando as publicações em que trabalhava fecharam, visitei um editor muito importante de uma publicação de Milão. E ele disse-me que quando eu tivesse algum tipo de imagem mais picante, teria todo o gosto em a publicar. Quando me disse isso, percebi que aquela era dourada de fotojornalismo tinha acabado e que agora os novos tempos eram de fotos picantes para tablóides. Eu, como tinha conseguido conquistar relações muito próximas com aristocratas, nobres e atores, muitos dos quais nunca se tinham deixado fotografar, não podia começar a trabalhar como paparazzo e trair a sua confiança. Nunca poderia tirar vantagens a partir dos meus conhecimentos.

Quando fala disso, sente-se uma mágoa e até raiva da chegada dessa era dos “paparazzi”…

Paolo di Paolo – Os paparazzi são um fenómeno inventado pelo Fellini. O Fellini foi um grande realizador, mas deve muito ao Rodolfo Sonego, que era meu amigo. Eles inventaram muito, como a Via Veneto do “Dolce Vita”. Nada no “Dolce Vita” é verdade, nunca conheci atores por lá. A Grace Kelly, princesa do Mónaco, esteve durante a lua de mel com o marido num café na Via Veneto, à espera de alguém, mas ninguém chegou. Nem os fotografei, pois foi uma cena tão solitária (risos).

Quando olhamos para trás, esse movimento de fotógrafos a que pertencia era como uma espécie de Nouvelle Vague...

Paolo di Paolo – Bravo. Isso mesmo. Sabe, sair desta vida e profissão custou muito, mas neste caso ou fazes o que gostas ou não fazes de todo. O grupo de fotógrafos em que estava inserido agia de forma diferente e na época não tínhamos noção que éramos uma espécie de movimento. Que fazíamos uma coisa que era diferente e seria no futuro recompensada. Nunca me vi como superior aos outros em termos de qualidade, mas sim em empenho. Sinto que podia ultrapassar alguém como o Cartier-Bresson, não na técnica, mas na interpretação. Estilisticamente, ele era insuperável, mas o conteúdo era frio, vazio. Por exemplo, num dos seus últimos livros ele fala da fotografia como a captura do momento mágico. E o que é o momento mágico? É – por exemplo -aquela fotografia que captei de uma família a olhar para o mar. Uma família que provavelmente seria a primeira vez que estavam a ver o mar. Lembro-me desse dia. Estava a conduzir junto à costa e não se via ninguém, estava tudo deserto. O momento em que vi essa família e fotografei sabia que tinha captado o momento mágico. Outro exemplo, a partir de uma fotografia que está nesta exposição em Lisboa, é a de um casamento no campo, onde vemos um casal e o pai da noiva. Esse momento mágico é o pai que parece estar a falar “onde vais com a minha filha?”. O ângulo exagera a figura do pai.

Este momento mágico é quando sentes que algo vai acontecer e acontece. Isso traz-te uma alegria tão grande que percebes nesse instante porque fazes o que fazes. Essa foto é tão perfeita que o editor do Il Mundo não quis publicar. Parecia trabalhada.

© Paolo Di Paolo

Na verdade, esse dia foi o único verdadeiramente belo que passei com o Pasolini. Ele confiava muito em mim, mas era incapaz de demonstrá-lo. Nesse dia entendi que tínhamos de estar em silêncio no trabalho e sabia que o Pasolini ia muito aquela região em busca de solitude. Foi nesse dia que entendi tudo o que havia para entender sobre ele. Era alguém muito difícil. O meu talento não era a minha habilidade em tirar as fotos, mas interpretar a situação. Aconteceu-me o mesmo com a Anna Magnani.

Sofri muito quando tive de deixar esta vida.

E sofreu também ao tirar certas fotografias, como aquela que vemos no documentário, da criança doente…

Paolo di Paolo – Sim, foi um momento trágico. Estava a fazer uma reportagem e entrei numa pequena aldeia. Passei do passado glorioso e histórico para a pobreza verdadeira. E esta criança lembrou-me a minha própria infância, numa aldeia pobre, a jogar com uma bola de trapos. E mesmo quando uma vez me deram uma bola a sério, o meu pai pegou nela e levou-a. Nunca me esqueci isso. Talvez o meu pai não quisesse que eu jogasse, ou que estivesse nas ruas a brincar. Sinceramente nunca soube porque ele fez aquilo.

Essa criança da foto estava ao pé de outros que estavam a jogar. Os outros não o queriam no jogo porque ele devia estar doente. Tinha arranhões, feridas, etc. Ele viu-me preparado para lhe tirar uma fotografia, a poucos centímetros, mas naquele instante senti que estava a tomar vantagem de algo e que não era correto. Era uma foto fácil, não era justa, mas decidi tirar na mesma porque era um documento importante sobre a miséria. Era uma história que precisava ser contada. Não podia negligenciar isso. Mas essa foto nunca foi publicada.

E é uma fotografia fortíssima…

Paolo di Paolo – Muito forte. Quando fizemos a exposição em Milão, a curadora também não a quis usar. Ainda argumentei que queria contar a história desse momento, mas ela disse que era uma foto demasiado fácil. Bem, nessa foto há história, humanidade, ambiente, pobreza. Em suma, a condição humana.

Fotografava essa pobreza, mas também a riqueza quando lidava com aristocratas e atores. Como era passar de um lado ao outro da barricada?

Paolo di Paolo – A única forma era encontrar no objeto fotografado o íntimo e interior, mesmo nas grandes estrelas. Fazer as coisas de forma a que eles se sentissem tranquilos e serenos. Todos se sentiam perante um amigo. Por exemplo, para mim, um ator não era um ator. Era alguém como eu, alguém em quem podiam confiar.

Fiz uma série de reportagens que se chamavam “encontros impossíveis”, que juntavam pessoas de várias áreas. Deixava simplesmente essas coisas acontecerem, não forçava nada. Captava a essência dos fotografados, não as estrelas.(…) Gosto do realismo. Se uma situação em fotografia é provocada, não gosto e não tiro a fotografia.

Antigamente só um pequeno grupo de pessoas tinha acesso a uma câmara fotográfica. Hoje em dia, as câmaras estão em todos nós. Todos podem ser um paparazzo ou um fotojornalista. Como vê hoje em dia a fotografia e este acesso de todos às câmaras?

Paolo di Paolo – Hoje em dia qualquer um tira fotografias e é fácil. E todos tiram as fotografias como prova que algo aconteceu. Antes, a interpretação do que fotografar implicava técnica, especialmente no que concerne à iluminação. Era muito difícil. Hoje em dia isso já não é o mistério que era antigamente. Não precisamos da habilidade que antes era exigida. As câmaras atuais fazem tudo.

Por exemplo, uma foto que tirei ao Pasolini foi dificílima. A luz era difusa e dominava o céu. Quando tens a técnica aliada à sensibilidade e ao instinto a fotografia é um verdadeiro trabalho, um emprego. Hoje, disparas a torto e a direito, e todos conseguem fazê-lo. Além disso, naquele tempo, a relação que tinhas com as pessoas que fotografavas era muito importante.

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