Sábado, 18 Maio

‘Uma câmara colocada na rua, no Brasil de hoje, é isso: futuro’, diz Adirley Queirós

“Mato Seco em Chamas” chega aos cinemas a 27 de outubro


Definido na sua elogiada passagem pela 72ª Berlinale como uma espécie de “Mad Max” no Distrito Federal do Brasil, “Mato Seco em Chamas” é uma provocação poética e política que o realizador Adirley Queirós, em codireção com a cineasta portuguesa Joana Pimenta, faz a um dos géneros menos explorados na América do Sul: a ficção científica. Por questões sociológicas que abrandaram a fantasia, abrindo espaço, no máximo para o realismo mágico da literatura, as Américas pouco praticaram a sci-fi. Mas Adirley, um ex-jogador de futebol nascido em Morro Agudo de Goiás, há 52 anos, e radicado na Ceilândia (maior região administrativa do DF, numa área estimada em 230,3 km² próxima à capital brasileira, com um registo de 500 mil habitantes no seu site oficial), tornou-se um expoente mundial desse filão.

Ele fez de “Branco Sai, Preto Fica” (2014) uma carta de intenções da sua estética distópica de inclusões, denúncias e rap.  Despontou no olhar da crítica brasileira em 2005, com a curta “Rap, o Canto da Ceilândia”, e ganhou afagos, elogios e prémios internacionais ao sair de Locarno, em 2017, laureado com a menção honrosa do júri por “Era Uma Vez Brasília”, que era fotografado por Joana.

A dupla colheu repercussões positivas no Festival de Berlim, na sua passagem pelo Forum, com “Mato Seco em Chamas”. A sua trama localiza-se nas franjas entre a sci-fi e o documentário, onde um grupo de mulheres da favela do Sol Nascente, nas raias de Brasília, tenta abastecer a sua comunidade com combustível, sob o jugo de um governo conservador. O foco delas é a solidariedade. Na entrevista a seguir, Adirley explica ao C7 como é a reinvenção para uma geopolítica de contradições que ele propõe nos seus filmes.

Como a Joana Pimenta entrou no seu processo criativo e o que ela agregou de mais particular ao seu cinema autoral?

Já a conhecia há muito tempo. A gente se ‘trombava’ em festival. )Interessava-me muito pela forma que ela filma, com uma certa etnografia nas suas curtas. Chamei a Joana para fotografar o “Era Uma Vez Brasília” por isso mesmo, pois via um estranhamento nela. Quando digo estranhamento, refiro-me à capacidade que ela tem de se distanciar dos objetos, de olhar de fora. Eu tinha a vontade de um olhar estranho para Brasília. Estranho no sentido de não saber o que era a cidade. Eu não sei o que esse filme, o “Mato Seco”, aponta de novidade, sei que ele reafirma o que sempre busco, que é dar poder às pessoas que coloco em frente das câmaras.

Geograficamente, qual é a distância entre a Ceilândia, onde você vive, e Brasília, a capital política do Brasil, ambas localizadas na Região Centro-Oeste, no Distrito Federal?

Da minha casa até Brasília, são cerca de 41 km. Mas da cidade até lá, em geral, a distância varia entre 33km e 50km. À noite, quando vou lá, de carro, consigo fazer o percurso em até 25 minutos. Mas durante o dia, quando o trânsito é intenso, leva-se uma hora e 15 minutos de ónibus. De metro é cerca de uma hora.

Qual é o cinema que você vem construindo a partir da Ceilândia, com referências de ficção científica?

Sempre tive vontade de fazer filmes que também me toquem. Cheguei ao cinema pelos grandes filmes de Hollywood que via, nos anos 1980, quando ia nas salas de cinema, como “Mad Max” e “Blade Runner”. Existia um mundo muito incrível e exótico neles. Esse mundo, sempre me deu uma vontade de tocar no aspecto político da ficção científica. Mas não é um político moral ou institucional. É a vontade de que as pessoas perto de mim pudessem ter uma relevância a partir do que elas são. Do que são enquanto território, do que são relações interpessoais. Eu queria que essas pessoas tivessem força na frente das câmaras. Essa foi a questão que me envolveu por toda a minha vida. No “Mato Seco em Chamas”, queria que as meninas, as protagonistas, fossem o centro do mundo. É uma geração que foi sem privilégios de um processo para o outro. Queria deixar que elas falassem sobre um mundo que soubessem contar.

Uma vez que vive inserido no coração político do Brasil, é impossível não te perguntar: quem ganha a eleição presidencial: Lula ou Bolsonaro? Como é que a periferia vem reagindo ao processo eleitoral?

As pessoas idealizam demais a “quebrada”, como se fosse uma idealização com uma postura progressista, como se eles devessem se rebelar contra o processo todo. Não podemos esquecer que todos os políticos brasileiros foram/são perversos. Eu sempre fui meio progressista, politicamente falando, posso atacar o político no cinema, mas acredito na política. Acredito que é possível fazer política e é necessário fazer. Quando falamos do Bolsonaro… acredito que seja possível termos uma vitória da esquerda sobre a direita, uma vitória do Lula ou de quem vier com ele. Mas o que chamamos de “bolsonarismo” não irá acabar nunca. Pessoas muito próximas a mim são bolsonaristas ferrenhas. É uma questão muito doida. Acho que a nossa esquerda foi tão moralista que gerou isso. Veio por um processo de exclusão, pois, no Brasil, as contradições são muitas. O bolsonarismo é uma grande falácia, mas eles ainda possuem esse lugar de identificação. Tenho a esperança que possamos sair desse lugar perverso enquanto política. Mas devemos continuar a conviver com essa dívida que foi a exclusão de uma parcela periférica. Vejo hoje uma Brasília progressista e vejo uma periferia com vergonha de dizer que já foi Bolsonaro.

Existe uma sala de cinema na Ceilândia?
Não.

Já mostrou o seu cinema aí?


De muitas maneiras. Eles veem filme direto. Exibimos muito em escolas públicas. Pego no meu projetor, boto no carro, bato na escola e me ofereço para trocar uma palavra com os alunos. Há um tempo um rapaz me ligou falando que tinha remontado o “Cidade é uma Só?” e achei isso bom. Ficou muito melhor a remontagem. Achei muito incrível. Os filmes estão aí. O “Cidade é uma Só” virou quase institucional, pois é matéria obrigatória para o vestibular da Universidade de Brasília.

Como define a ficção científica como género dramatúrgico?

É engraçado pensar nisso, pelo jeito que vivi a minha vida. Sou dos anos 1980. Não sou um artista, sou “da bola”, do futebol. Ficava muito nas esquinas. Não era do teatro e tudo mais. Um dia caiu na minha mão o livro “Cavalo de Tróia”.Foi ali a descoberta. Era um livro que a minha turma toda lia, no mesmo exemplar. Então liamos aos pedaços, aos pouquinhos. Com isso, acabava inventando trechos, reinventando umas partes. Para mim, a ficção cientifica é reinventar o real. É pensar o que seria se o real fosse diferente, se olhasses para o real sem o compromisso com a realidade. Não é para dizer às pessoas que este é o mundo real. Não quero dizer às pessoas que a Ceilândia é assim ou assado. Quero mostrar às pessoas a Ceilândia que vivi, mas ressaltando que tem outras 500 mil pessoas pensando aquele lugar de uma forma diferente. Se partes da ficção cientifica, não tens compromisso com ninguém e com nada. Estás a reinventar o mundo. Não existe uma gramática específica. Mas podes partir do zero e trazer uma realidade próxima a ti.É imaginar o real a partir de uma realidade que não foi formatada ainda. Para mim, é muito mais interessante entrar na memória. Tento retratar como a memória conta uma história hoje.

De que maneira “Mato Seco em Chamas” se encaixa nesse género, nesse lugar de uma memória que não se formata?

O “Mato Seco” começou a ser filmado antes da pandemia, em 2016. O argumento do filme era: mulheres acham petróleo na Ceilândia furando poços artesianos atrás de água. Faltava água lá mesmo. A personagem principal fura o buraco e descobre que essa área era uma reserva de petróleo. Mas o Estado Brasileiro não poderia deixar esse recurso para as pessoas na Ceilândia. O Estado teria que atirar as pessoas para fora. Para isso, afirmam que lá existe um vírus mortal. A cada cem pessoas, três morrem quando afetadas por ele. O filme todo era o exército na rua jogando fumaça nas casas e as pessoas de máscara na rua. Quando aconteceu a Covid-19, contar esse argumento, desse jeito, era impossível de fazer, e o filme foi tomando a direção que a gente tomou. Hoje, sinto que o filme é muito mais sobre essa tentativa de quebra dos tempos – o presente e o futuro – e sobre essa ideia de um estado opressor, o que alimenta uma possibilidade de luta. A política de esquerda precisa nascer na desordem. A partir do momento em que abres o mundo para oportunidades que não estão formatadas, elas necessariamente trazem o futuro. Se eu colocar uma câmara na rua agora, os pequenos gestos que vão aparecer serão uma premonição do futuro. Uma câmara colocada na rua, no Brasil de hoje, é isso: futuro. Estamos tão presos ao real que não conseguimos imaginar o futuro. A ficção cientifica pode ser um desejo de uma certa classe, pois as classes também desejam sentimentos futuros. Para mim, o “Mato Seco” é uma lenda. A personagem principal falava muito das lendas. A Léa disse: “Vocês me transformaram em uma lenda. Daqui a 40 anos, os meus netos vão olhar isso e dizer que eu era uma lenda”. A ficção cientifica tem muito a ver com a ideia da lenda, é criar lendas. Não necessariamente ser a narrativa da lenda institucional. Pelo contrário, aliás. É justamente essa possibilidade de criar lendas. E isso me motiva.

Que projetos novos você tem pela frente?

Há um filme que se chama “Grande Sertão: Quebradas” e já está em processo. É um projeto em que já estamos envolvidos há bastante tempo. Começou movido pelo sentimento do “Grande Sertão: Veredas”, do Guimarães Rosa. O filme é uma aventura de sete ou oito personagens. A história do Distrito Federal é a história das pessoas que perderam as suas terras. O filme viaja por uma ideia de como essas pessoas vão para o interior do Brasil para uma vingança. Vamos dar um passo atrás para dar uma origem ao futuro. É um filme pequeno, como tudo nosso, com três, quatro pessoas filmando, e as personagens nas estradas. Coincidentemente, será filmado durante o ano da eleição, como tudo meu.

Você abriu o ano, em janeiro, sendo homenageado pela 25ª edição da Mostra de Tiradentes, em Minas Gerais, que celebrou a sua carreira, reexibindo, online, os seus filmes. O que esse tributo representou?

Tiradentes ainda é a grande vitrina brasileira. Poucos festivais do mundo dão a oportunidade para o primeiro filme aparecer como eles dão. Tiradentes é a vanguarda brasileira. Tenho um carinho muito grande e um respeito grande também com o festival. Isso me orgulha muito: ocupar um lugarzinho lá. A homenagem foi linda e é mais do que realmente mereço. O que me toca são os filmes que eles trazem ainda terem fôlego para compor esse mosaico. E toca-me que os meus filmes entrem nesse mosaico. O cinema brasileiro renova-se de maneira muito rápida.

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