Domingo, 19 Maio

“El Radioaficionado”: sem tabus e clichês, o retrato de um adulto neurodivergente

Depois de ser exibido nos festivais de San Sebastián e Tallinn Black Nights, “El Radioaficionado” compete agora no Bergamo Film Meeting.

Nesta primeira longa-metragem de Iker Elorrieta seguimos Nikolas, um jovem neurodivergente que, após a morte da sua mãe, decide voltar à sua cidade natal com uma tarefa muito clara em mente. Mas nesse percurso, Niko vai cruzar-se com várias personagens e nem todos “sintonizam a mesma frequência que ele“.

Um filme doce, mas igualmente duro de assistir, que lança Iker Elorrieta como um cineasta a seguir no futuro. Falámos com ele sobre este seu “El Radioaficionado”. Aqui ficam as suas palavras.

Iker Elorrieta

Começou a preparar o seu filme há cinco anos. Houve muitas mudanças nele durante este período? Qual foi a maior dificuldade que encontrou no percurso para fazer este projeto?

El Radioaficionado” é um projeto que está na minha cabeça há muitos anos, pois sou amigo íntimo de uma família que vive com um caso semelhante. O filho deles tem 18 anos e eu conheço-os desde antes dele nascer. Nestes últimos cinco anos, escrevi vários roteiros em paralelo e aprendi a fazer coisas ao mesmo tempo. Continuo e aprendo a cada dia.

O filme aborda questões que me afetam pessoalmente, e suponho que, neste momento, qualquer pessoa tem uma visão mais adulta da vida do que teria há cinco anos. Pelo caminho, também filmei alguns documentários e fiz muita publicidade, suponho que por isso também houve uma evolução técnica na forma de fazer as coisas.

A maior dificuldade que encontrei foi encontrar financiamento para filmar o projeto. No País Basco é praticamente impossível fazer o seu primeiro filme se não tiveres muitos contactos ou muito dinheiro e, no meu caso, não tenho nenhuma das duas coisas. Ninguém te dá uma chance. Como se diz aqui: “quem espera desespera”. O meu sócio e eu decidimos produzi-la e propus-me a reescrever a história para poder produzi-la com os nossos próprios recursos. Foi um esforço titânico conseguir realizá-lo.

El Radioaficionado

Existem vários filmes e séries de televisão onde pessoas autistas são os protagonistas.
Como preparou/desenvolveu o seu filme nesse sentido para lhe dar singularidade, fugir dos clichês e ao mesmo tempo tentar ser sensível ao assunto?

Sim, ultimamente tenho visto algumas séries e filmes americanos sobre o tema. E também tenho visto alguns filmes europeus que tratam muito bem o assunto. Há de tudo, mas percebi que dificilmente existiam filmes em que a personagem principal fosse um adulto neurodivergente. É um grande desafio, principalmente para a comunicação com outras pessoas, e que normalmente é uma característica das pessoas com autismo. É muito complexa na hora de criar uma personagem principal para carregar o peso de um filme. O que geralmente se vê é que a pessoa que tem mais peso durante a filmagem é um membro da família ou o tutor que o apoia.

Na pré-produção de “El Radioaficionado” houve muita pesquisa, reflexão e conversas com pessoas que convivem com o autismo de perto. Além disso, algumas das cenas do filme são momentos que vivi pessoalmente, tentando transmitir as minhas próprias emoções através de uma câmara.

Já me disseram que o filme não caiu no uso de clichês sobre o autismo. Certamente estou lisonjeado que o filme transmita isso, mas também acho que dentro do espectro há uma variedade tão grande quanto há pessoas no mundo. A pessoa é o que define a personagem no filme, não o autismo em si. O assunto é muito delicado, mas prefiro falar sobre neurodivergência e não sobre autismo. Se perceberem, no filme a palavra autismo não é mencionada em nenhum momento. Para mim o mais importante foi focar o sentimento de pertença que o protagonista tem, e em contraponto, o sentimento de não querer pertencer que queria transmitir com a Ane, a coprotagonista.

Como foi a sua colaboração com o ator Falco Cabo? Houve pesquisa com autistas para criar o Niko, cuja composição da personagem e expressão corporal impressionam?

Estávamos em Madrid a fazer um curso de direção de atores quando nos conhecemos. Desde o primeiro dia percebi que era a pessoa certa para o papel. Ele é um ator que trabalha no teatro musical, e tem um controle muito bom do corpo apesar do seu grande tamanho, então começámos a trabalhar a linguagem corporal.

As primeiras sessões de trabalho foram em estúdio; Uma das primeiras partes em que trabalhámos foi a sua maneira de andar. Seguidamente pensei em como refletir o sentimento de culpa sobre a relação entre os pais no passado, com o movimento dos seus ombros. Esses foram os primeiros passos que demos ao trabalhar com o corpo dele. Ficou claro para ele que era mais importante para os atores saber de onde vinham do que o que estava escrito nas falas do roteiro. Tive então a liberdade de guardar o mistério, algo que adoro nos filmes como ferramenta narrativa.

Como indivíduo, Nikolas é muito frágil, pois não conseguiu ganhar experiência nas relações sociais. O único contato com outras pessoas, durante anos, foi sempre através do rádio VHF em casa, ouvindo, mas nunca interagindo.

El Radioaficionado

Uma das coisas que mais se destaca no filme é a música, de Aitor Etxebarria. Como foi essa colaboração entre os dois para adicionar uma camada de melodrama sem ser muito sentimental?

Sim, já escrevi outros projetos que não têm uma única nota musical, mas, neste caso, ficou claro que a música seria mais um elemento narrativo do filme. Foi a primeira vez que trabalhei num projeto com o Aitor, e isso retarda um pouco o processo até que nos conheçamos. Mas não estávamos com pressa, queríamos pensar em algo que nos preenchesse e não parámos até conseguir.

Costumo ouvir muita música para me inspirar, na verdade, faço isso constantemente para escrever,. Isso motiva-me a imaginar algumas cenas enquanto dou um passeio por um possível local. O primeiro passo foi fazer uma lista das referências musicais que tinha em mente. Foi muito gratificante descobrir que o Aitor se inspirou em muitos dos músicos desta lista.

Estávamos no meio do confinamento. Nas horas que tínhamos permissão para sair, caminhava até o estúdio dele que ficava perto da minha casa. Foi lá que íamos procurando até encontrar algumas melodias e sons que nos encaixassem. Tentámos algumas coisas que gostamos muito com o violão clássico, mas não funcionavam pois estavam completamente fora do tom do filme e tivemos que deixá-las de fora do corte final.

O som em “El Radioaficionado” é fundamental, e gostaria de destacar a estreita colaboração que o Aitor e eu tivemos com o designer de som e editor Xanti Salvador. Pessoalmente, gostei muito de trabalhar com ele. Conectamos-mos rapidamente e o Xanti estava muito motivado com o projeto desde o primeiro momento, sendo uma ótima colaboração.

Tanto a integração da música quanto do som têm um papel artístico muito importante. O uso de algumas frequências que se misturam ao som da vida real foi um trabalho maravilhoso do Xanti Salvador, com a colaboração de Koldo Corella na edição de som. Sabíamos desde o início que não íamos tentar recriar o som da perceção sonora de uma pessoa com autismo, porque pensamos que seria muito pretensioso, mas trabalhamos nisso do nosso ponto mais íntimo e pessoal de visualizar. Fico muito feliz com o resultado e grato por ter contado com a colaboração desses grandes profissionais no processo de criação.

Depois de Donostia, Tallinn. Como vê a trajetória internacional do filme em festivais de cinema?

Estou em Tallinn e ontem tivemos a estreia internacional. Estou a receber um feedback muito bom da imprensa internacional, da organização do festival e do público. Faz-me muito feliz
que o filme e o que se fala dele sejam valorizados num festival tão importante que conta com público e profissionais da indústria de todo o mundo. Agora estamos a ver em que outros festivais poderia ser interessante o filme ser submetido para avaliação. Estamos muito felizes com a trajetória dele.

E já tem um novo projeto? Pode falar um pouco sobre ele?

Sim, aceitei um projecto que comecei a escrever paralelamente ao guião de “El Radioaficionado”. Ainda não posso contar muito, mas estou animado para escrever uma história baseada em eventos reais. É uma história muito bonita e sensorial. Sinto-a muito em mim, e tenho as imagens dele na minha cabeça. Comecei com alguns eventos que aconteceram nas Ilhas Canárias há vários anos e estou a adaptar o tema a conceitos mais pessoais. Neste momento estou a passar muito tempo lá, nas Canárias, a escrever e fotografar os locais onde gostaria de fazer o filme.

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