Domingo, 19 Maio

Haruhara-san’s Recorder: do tanka ao filme

Vencedor do FIDMarseille e presente na programação eclética da secção Zabaltegi-Tabakalera de San Sebastián, “Haruhara-san’s Recorder” chega agora ao Festival de Cinema Mannheim-Heidelberg com toda a sua rigidez formal e poder emocional para mostrar uma obra onde a perda e a dor, nos subúrbios de Tóquio, são servidas de forma sensorial com uma rara destreza e sensibilidade poética.

Inspirado num tanka, um curto poema de Naoko Higashi, Kyoshi Sugita criou – juntamente com a atriz Chika Araki – uma obra de arte que nunca recorre a um enredo ou forma tradicional. Na verdade, o guião do filme só se mostrou completo na sala de montagem, já que ele seguia a vida e memórias da protagonista que apenas aos poucos vai sendo desvendada ao espectador.

Todo o projeto começou ainda no espaço onde foi apresentado, pela primeira vez, em Tóquio, o seu filme anterior, “Song of the light“. Foi aí que uma mulher com uma grande máscara sorriu e cumprimentou o cineasta apenas com os olhos. Sugita percebeu então que ela era alguém que morava com uma atriz que atuou numa produção teatral em que participou. Essa mulher, Chika Araki, deveria estar a preparar-se para uma cirurgia, mas saiu do hospital para ver o seu filme. Foi então que o realizador, encantado com o esforço da mulher para ver o filme, disse-lhe que se ela passasse pelo tratamento e tudo corresse bem, fariam um filme juntos. E assim foi. Meio ano depois entrou em contacto com ela para se encontrarem num salão de chá. Depois dessa conversa, e no regresso a casa, surgiu na cabeça de Sugita o tanka que iria servir de base para o filme. 

Kyoshi Sugita e Chika Araki em San Sebastián | Foto por Montse Castillo

Este método, além de todo o tom poético da obra, colocam o realizador num lugar muito estreito e particular do cinema japonês. Por isso mesmo, quando lhe perguntámos na cidade basca onde ele se posiciona na indústria local, a sua resposta só podia ser uma: “Na indústria, em lado nenhum (risos)… Bem, posiciono-me numa posição super independente. Os cineastas comerciais ‘não fazem caso de mim’”.

Curiosamente, quando nos estávamos a preparar para esta conversa com Sugita, um elemento que imediatamente nos chamou a atenção foi que os primeiros resultados biográficos sobre ele no Google diziam todos a mesma coisa: “um protegido de Kiyoshi Kurosawa”. Sugita ri quando falamos disso, e explica a razão para tal estar assim tão destacado na internet: “Antes de me dedicar ao mundo do cinema era um grande fã de um filme do Kiyoshi Kurosawa, o “Cure”. Depois disso, o primeiro filme em que trabalhei como assistente de realização era de Kurosawa. Tenho a certeza que foi difícil para o Kurosawa trabalhar comigo, pois dizia-me coisas e eu não obedecia, fazia precisamente o contrário (risos). Certamente isso custava-lhe muito na época (risos). Quando tinha 25 anos, trabalhei novamente com ele e sabia que tinha uma longa-metragem na agenda. Disse-lhe que gostaria de voltar a trabalhar com ele, mas ele disse-me que eu já estava preparado para fazer os meus próprios filmes.

Segundo Sugita, apesar dessa ligação a Kurosawa, aquilo que mais aprendeu com dele não é propriamente ligado os filmes que fez, mas o seu método e presença nos sets: “Acima de tudo, o que aprendi foi que nas rodagens ele não dá nenhum tipo de instrução. Todos em palco se movem por si só. Ele põe-se ao lado da câmara e aí fica.

Haruhara-san’s Recorder

Embora desconfie da palavra “autor” quando usada em relação a si, a verdade é que este cineasta japonês já começou a estabelecer o seu nome no circuito internacional dos festivais de cinema, algo que ele admite não lhe trazer qualquer tipo de pressão para o futuro, até porque não se vê como um daqueles realizadores que se sente obrigado a fazer filmes com frequência. “Já me sinto feliz ao ver filmes num cinema. Não sinto essa necessidade urgente de criar um filme. Claro que se me comprometo em fazer um filme, faço, mas como trabalhei como assistente de realização, também percebi que não me sinto bem a fazer filmes comerciais. Movo-me pelo cinema indie, comunicando e trabalhando apenas com algumas pessoas que conheço”.

Quanto a Chika Araki, a própria também nos confidenciou a sua felicidade por ter participado no projeto. “Estou super contente de me ter envolvido nele desde o princípio. Muito orgulhosa e muito surpreendida, até porque é a primeira vez que atuo num filme. San Sebastián é também o primeiro festival de cinema que visito“.

E quanto ao futuro, Sugita já tem um novo trabalho em mente, no qual vai reencontrar Chika Araki e uma atriz veterana que “ainda não sabe que vai participar nele”: “Faz dez anos que não vejo essa atriz, mas nesta tour do meu filme pelos festivais internacionais de cinema vou encontrá-la. Iremos tomar café durante duas ou três horas e logo me surgirá a história. É um projeto um pouco rocambolesco, mas há um produtor que já disse que quer trabalhar comigo“. 

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