Sexta-feira, 10 Maio

Da Turquia ao México, Emre Kayiş e as crises existenciais das suas personagens

Tal como “Brother’s Keeper”, “Anatolian Leopard” chegou ao Festival de Anatólia já com uma distinção internacional na bagagem alcançada no TIFF (Prémio FIPRESCI).

Também ele uma alegoria com multicamadas, que mistura drama, comédia negra, thriller e um subtexto político e social, o filme acompanha de perto o diretor de um Zoo que tem de lidar com a mudança dos tempos e a transferência de poder da sua instituição do sector público para o privado. Um “negócio das arábias” que só sobrevive se o Leopardo da Anatólia, espécie em extinção, estiver em boa forma. O problema é quando o leopardo adoece, uma série de problemas apresentam-se pela frente ao diretor do Zoo, também ele uma espécie em extinção no panorama atual.

Falámos com o realizador em estreia nas longas-metragens em Antália, que nos explicou um pouco como desenvolveu esta ideia e como vê o cinema para o seu futuro. Aqui fica a nossa conversa com Emre Kayiş, vencedor dos prémios de melhor primeiro filme e melhor direção artística em Antália.

Emre Kayiş

Como nasceu esta ideia para o Anatolian Leoparde como é habitualmente o seu processo de criação?

Geralmente estas ideias vêm de coisas que não consigo explicar, do subconsciente, acredito. Esta apareceu-me com o animal em extinção, o Leopardo de Anatólia. Queria usar isso como uma metáfora para uma pessoa, uma geração, um negócio, que está também em perigo de extinção. Usando este microcosmos vi as possibilidades e o potencial de fazer um filme forte. E este microcosmos pode conectar-se a um macrocosmos. Existe aqui uma conexão orgânica entre os dois.

E houve algum cuidado especial em transformar esta história num objeto universal?

Penso que quanto mais local, mais universal. Claro que há certas especificidades locais que não conseguem se traduzir para algo mais global, mas acredito nas audiências. Vi isso nos mestres que observei, como o [Joseph] Losey, [Satyajit] Ray ou [Abbas]  Kiarostami. Há muitos outros que podia citar. O que posso dizer é que no seu cinema senti sempre que confiavam em mim, como espectador. Neste filme tentei apenas mostrar o que sei e não apenas porque achava interessante. Depois era confiar na audiência. Aprecio muito quando pessoas de diferentes países sentem o mesmo que tento contar, pois dá-me muita força e esperança. Na verdade, não fiz nenhum esforço para esta ser uma história universal.

E foi importante para se conquistar um prémio em Toronto, num festival bem longe da Turquia, onde a ação se passa?

Claro, pois dá-nos sempre – como costumo dizer – força. Estamos num negócio de certa maneira também ele em extinção. Temos de ter esperança, mas nada está a nosso favor. Tudo está contra. Este tipo de prémios mostra-me que não estou sozinho, que alguém pode sentir o que sinto. Como artista, grande parte do tempo vivo com mais questões que respostas. Tenho de envolver as duas coisas. Falei com muita gente de todo o lado, da China ao Canadá. Este último, como sabemos, é um país com muita imigração e pessoas de muitos origens. A resposta ao filme foi muito interessante. Para ser honesto, inicialmente estava ansioso em relação a uma coisa simples: o humor. Gosto muito de humor subtil e negro. Na minha jornada pelo cinema penso sempre em como mostrar isso de uma forma muito única. Podemos ir sempre pelo humor negro, como o Kiarostami, Jia Zhang Ke ou [Aki] Kaurismaki. Podia segui-los, mas queria fazer o meu próprio e que a audiência apreciasse isso, mesmo que fosse algo que não percebessem inteiramente. Quando vemos que isso está a traduzir-se para outras pessoas, isso dá-te muita força. Sinto que não estou só. Há muitas almas em todo o mundo que estão conectadas e não alienadas. Nós não somos apenas indivíduos, nós estamos ligados.

E falando no humor e no drama que existe no filme, essa mistura, especialmente em torno do protagonista, como foi combinar isso tudo e a sua interação com o ator que tem de trabalhar essa personagem? É alguém muito preciso no que queria dele ou deixou-o ter algum espaço para construir aquela personagem?

Essa é uma boa questão, pois para mim o guião é muito importante para demonstrar as minhas intenções aos espectadores. Quando começo um filme, o guião é como um planta, mas nunca executo as coisas tal e qual elas estão nela. Na verdade, é o ator que carrega todo aquele fardo às costas. Falei muito com ele, mas não de como isto ou aquilo seria falado ou dos diálogos que tem. Falei da intenção das cenas, de como ele as via. As vezes víamos tudo da mesma maneira, outras vezes não e descobríamos uma nova camada. Depois deixei-o trabalhar e nunca o travei durante as filmagens, da mesma forma que não o faço, por exemplo, com quem está a trabalhar na iluminação. Deixo-os trabalhar e confio neles. Por exemplo, na cena com o leopardo filmei-a de diferentes formas para testar coisas diferentes que capturavam diferentes emoções e tons.

O silêncio é particularmente importante nesta personagem. Por exemplo, quando vemos naquela cena ele a observar na janela a estátua do Zoo a ser movida por uma grua, capturamos sensações diferentes na sua expressão. Como constrói o silêncio no seu filme?

É algo que está no guião, mas não de uma maneira implicitamente escrita. Ele é um grande ator e tem os seus métodos, os quais nunca discutimos. Ele segue o mapa de sentimentos do personagem.

Gosto do silêncio no cinema. Gosto de construir isso e espero no futuro melhorar a minha capacidade de construção desse mesmo silêncio. O Antonioni é o mestre disso, de viajar no espaço-tempo em que todos estamos e o tempo-espaço da personagem que observamos. Para mim isto é uma das coisas mais importantes no cinema. O estar numa situação específica, mas estar igualmente em algo também diferente. Esta relatividade no cinema, a forma como traduzo isso, o como mostrar as coisas na minha forma única, é algo em que penso constantemente. Esta é a beleza do cinema. Podemos fazer às vezes um ambiente muito silencioso, em que a personagem apenas observa algo, mas também usando diálogos. Para mim, esta união é muito importante no cinema e espero melhorar no futuro.

Anatolian Leopard

Nesta nossa conversa já mencionou inúmeros cineastas internacionais. É alguém que assiste a muito cinema como forma de estudo?

Tornei-me realizador porque gosto de cinema, de ver estes filmes. Eles mostraram-me que existe algo mais do que apenas o que aparentam. Penso por exemplo no Satyajit Ray. Ou a primeira vez que vi um filme do De Sica. Simplesmente disse para mim, “wow”. 

E cineastas turcos? Também o influenciaram neste percurso?

Sim, por exemplo Metin Erksan. Claro que o Nuri Bilge Ceylan tem um cinema que aprecio muito. Estes dois foram os mais influentes , mas especialmente o Erksan. Ele filmava e ninguém entendia o que fazia. Vi recentemente no Criterion Channel  o “Dry Summer” (Verão seco), de 1964. E vi umas filmagens de 10 minutos onde o Erksam fala de como fez o filme. É incrível, parecia uma criança de 5 anos a falar. Por isso gosto de ver muito estes filmes e quando tenho uma hora livre aproveito para ver qualquer coisa assim.

E já está a filmar um novo projeto?

Sim, já estou. E mete-me um pouco medo. É novamente uma jornada existencial. A minha produtora, quando falo com ela sobre tema, fica assustada. Quero filmar no México. É a história do embaixador turco nos anos 1930. O mundo está louco com a teoria ariana. Tal como os nazis, alguns pensavam que o nosso sangue descendia de pessoas de há 3 mil anos atrás. Essa construção mítica ganhou nova força com a criação da República da Turquia depois da queda império otomano. Quiseram também criar a sua própria teoria que dizia que o povo turco não vinha apenas da Ásia, mas também de um continente perdido que os ligava a outras civilizações. De certa maneira fascina-me pois tem também o seu lado absurdo como vimos no “Anatolian Leopard”.

No meio disto tudo, a Turquia enviou mesmo uma pessoa para o México. No papel ele é embaixador, mas na realidade ele viaja para a floresta tropical para encontrar com indígenas que acredita provém desse povo perdido. É muito interessante, pois existem várias cartas deste homem, as quais são muito cinemáticas. No início, ele adora a teoria. Se pensarmos na mesma, ele comporta-se como um nazi, mas aos poucos vai descobrindo que as coisas não são bem assim. É nesse ponto que todo o sistema vira-lhe as costas. Ele dá por si como alguém que carrega o fardo de descobrir-se a si mesmo. Existem, novamente, muitos temas envolvidos. Mas é filmado na selva e isso, claro, assusta-me. 

Costuma-se dizer que o segundo filme é sempre mais complicado de fazer e é mais importante que o primeiro. Está preparado para isso?

Não me sinto preparado, mas há algo que me está a conduzir até lá.

Uma espécie de chamamento?

Sim, algo assim. O problema é que ainda não sei como o vou fazer. Sei a atmosfera e sensação que quero, mas tenho de descobrir como o fazer. (..) E há algo de épico nele. Gosto desta sensação. 

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