Quinta-feira, 28 Março

O surreal como resposta ao real: “Kerr” e o universo de Tayfun Pirselimoğlu

Pintor, escritor e cineasta, Tayfun Pirselimoğlu apresentou no Festival de Antália um dos objetos mais crípticos do certame, uma continuação do seu trabalho anterior onde os ambientes distópicos escondem mensagens políticas bem direcionadas. “Como estrangeiro não vais apanhar todas as referências políticas que estão no meu filme”, disse-nos o cineasta – considerado o melhor realizador pelo júri e pela crítica por “Kerr” – numa entrevista no magistral jardim que alberga o centro de congressos da cidade turca.

Tayfun Pirselimoğlu

No seu “Kerr”, um homem assiste a um crime, denuncia-o às autoridades, mas todas as pessoas em seu redor ora esqueceram-no ou não falam do que aconteceu. E acontece algo pior. A testemunha do crime é tratada como se fosse ele o criminoso, tudo numa região com milícias e entregue a uma estranha quarentena devido a ataques violentos por parte de cães vadios. Matilhas que nunca vislumbramos, mas ouvimos falar e servem para condicionar a liberdade de todos os homens da pequena cidade em causa. Estaria Tayfun´a fazer a sua própria “A Vila” ao estilo de Shyamalan? Haverá reminiscências de Kornel Mondruszco e o seu “White God”? E que significa aquele clube noturno obscuro, que parece saído da obra de David Lynch? As respostas, tal como o seu filme, são crípticas, e o autor apenas lança o seu fascínio pelo absurdo e a mistura de elementos realistas e surrealistas como uma resposta aos tempos que vivemos. “Há muitos realizadores que admiro muito e o David Lynch é um deles. Mas o Orson Welles é aquele que mais me diz. Era um génio. Alguns cineastas mexicanos e do oriente também me fascinam, pois em diferentes regiões os seus filmes têm uma forma diferente de serem lidos. Não consigo apontar particularmente este ou aquele como influência, mas todos juntos formaram a minha maneira de fazer cinema.” 

Visualmente deslumbrante, sonoramente hipnótico e espesso nas mensagens políticas e sociais por decifrar, “Kerr” é um objeto onde se sente claramente que pintura, literatura e cinema se fundem para criar um objeto particular. “Enquanto escrevo consigo visualizar tudo e na construção do guião ajuda bastante este meu lado literário. No cinema existe este quadro, esta frame, e tens de a pintar bem. Todas estas artes ajudam-me a criar o cinema que gosto e quero fazer, que passa por uma dinâmica entre o real e o surreal. (…) tudo começa de forma muito real, mas a reacção às coisas são totalmente absurdas. Tudo o que fazemos é político e o meu filme leva-nos ao que se está a passar no mundo e no meu país. Tudo depende sempre de como o lês. Como estrangeiro não consegues entender algo ligado à nossa política local, mas ainda sentes que há algo de estranho. Para um turco é muito fácil entender o subtexto do meu filme. Um dos espectadores disse-me que esta era um dos filmes mais políticos que viu na vida.”

Kerr

Para Tayfun Pirselimoğlu, cujo filme diz mais com as imagens que as palavras, o “silêncio é um dos aspectos mais cruciais” da sua marca como cineasta. “Se um realizador apenas se expressa pelas palavras das personagens, não existe qualquer desafio para o espectador. Além desses diálogos, para mim é essencial esse jogo entre o visual e o silêncio. O silêncio é uma ferramenta para a audiência fazer questões mentalmente. É neste momento que o espectador sente-se inseguro e questiona as coisas. O filme que quis fazer era para levantar questões, não dar respostas. Sou o responsável por introduzir essas questões. Claro que tenho em mim algumas respostas, mas deixo para o espectador essa tarefa. As tuas respostas podem ser diferentes das minhas, e isso é normal. Quando escreves um livro ou fazes um filme, esse trabalho sai das tuas mãos e torna-se uma entidade. Todas as pessoas têm a sua ideia sobre ele. Ninguém está errado. A ambiguidade é uma palavra chave e uma ferramenta que uso neste processo  (…) O cinema que procuro fazer nunca dá respostas concretas”. 

O futuro

No seu próximo projeto, Tayfun Pirselimoğlu vai seguir de perto outra das suas obsessões, a mudança da personalidade. “É sobre uma pessoa que de forma concreta assume a identidade de outra. Será igualmente absurdo, onde só pela personagem tocar no botão para parar um autocarro é tratado como o líder de uma organização secreta.” O guião já está escrito e o projeto até já foi apresentado no último Festival de Cannes a potenciais financiadores. Tayfun ainda pensa em mostrar os seus filmes nos cinemas, mas admite que no futuro estas serão como as mercearias, cada vez menores e localizadas, preferindo as pessoas ir aos grandes mercados (streaming). “A perceção da audiência mudou por causa destas plataformas. Eles têm milhares de filmes e clicando num botão tudo muda. A audiência pode apenas assistir a cinco minutos de um filme e mudar para outro imediatamente. Não há paixão. A produção agora é muito maior que a procura e isto cria um novo tipo de audiência. Isto acontece também no cinema de autor. Até os festivais de cinema querem mostrar filmes para as audiências. É uma grande mudança e a qualidade dos filmes está drasticamente a descer. A chave agora é ‘conteúdo’. Eles querem ter isso, não um filme, nem qualidade, nada. Isto é um grande desafio para os cineastas e sinto-me inseguro. Vou dizer isto, sem ter a certeza, mas… Se o Béla Tarr agora fizesse um filme, talvez fosse recusado num destes festivais…

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