Domingo, 19 Maio

Kiro Russo: “Sangue dos mineiros! Coração de lutador!”

Depois de “Viejo Calavera” e de “Nueva Vida”, Kiro Russo filmou“El Gran Movimento”

Kiro Russo não tem dúvidas. Filmar “El Gran Movimento” foi muito mais complexo e difícil que o seu exercício anterior, “Viejo calavera”, o qual  fez as delícias da crítica e dos festivais de cinema em 2017, tendo inclusivamente vencido o Grande Prémio Cidade de Lisboa do IndieLisboa. Primeiro porque foi difícil trabalhar com não atores, como Max Eduardo Bautista Uchasara, que constantemente olhavam para a câmara, e depois porque aconteceu o “golpe de estado na Bolívia” em 2019, o que gerou o dilema de integrar isso mesmo no seu novo filme, estreado no Festival de Veneza, exibido em San Sebastián, na secção Zabaltegi Tabakalera. Depois destes certames, regresso ao IndieLisboa.

Acima de tudo sempre quis fazer arte, algo que vai além do pensamento. E creio que para isso é preciso ter uma postura política e ideológica sobre as coisas, sempre com a consciência de onde vens”, disse-nos o cineasta boliviano sobre o seu cinema, que no caso de “El Gran Movimento” acompanha de perto um trabalhador acometido por uma doença, Elder (Julio César Ticona), e o xamã Max (Max Eduardo), que tenta lhe devolver saúde. “O cinema que faço relaciona-se com o sítio onde estou, a Bolívia. Nunca poderia fazer algo com uma estética comercial, de Hollywood e de género. (…) Para mim é um gesto político a forma do teu cinema. Há uma relação entre a forma e a política, do próprio entendimento do mundo e na representação da vida. Tenho cada vez mais atenção e cuidado ao abordar as questões partidárias políticas, pois apresentá-los em cena é dar-lhes mais poder, o que não quero. As ideologias estão agora num lugar muito complexo, pois na América Latina, esteja quem estiver no governo, vai dar ao mesmo. As coisas não estão bem, não só para as classes baixas, mas todas. Eu sou de classe média, como vou falar dos temas da classe baixa? Prefiro dar-lhes a voz. A política para mim também tem de ver com a tua ação no dia a dia, com a consciência de classe e o teu relacionamento com os outros. O mundo está cada vez mais repleto de ações individuais.

Admitindo que primeiro pensa no visual do filme e só depois no restante,  Russo afirma que segue essencialmente várias obsessões, afastando-se da necessidade extrema de ter uma narrativa clara, preferindo uma evocação do que vê, através de colagens. Com as narrativas atuais a oporem cada vez mais heróis e vilões, passam despercebidos e invisíveis todos os outros, como os trabalhadores que lutam para sobreviver e alimentam o sistema capitalista atual. “Penso também muito no meu cinema em nomes como os de Glauber Rocha, que fez um cinema político e criou uma estética. Tento entender o que poderia ser o cinema latino americano hoje em dia. Parto muito deste pensamento e da liberdade de quebrar certas regras para conseguir uma verdadeira experiência cinematográfica. (…) Trabalho com amigos e penso sempre em como construir o filme para os tornar protagonistas. O Max, por exemplo, é uma pessoa que esteve cinco anos fora do sistema, por isso é muito difícil para mim entender como o devo incluir no filme sem mostrar a miséria e a sua verdadeira vida. O cinema nunca vai ser a realidade, estou consciente disso, mas queria que certas coisas, como o humor e a forma como falam estivessem presentes. Há uma necessidade de documentar dentro da ficção algumas formas de agir das pessoas”. 

De acordo com Russo, a génese do seu filme está centrada num documentário de uma marcha de protesto que filmou trabalhadores de Huanuni em 2018. Nela, filhos de mineiros chegam a La Paz, juntamente com dezenas de outros jovens trabalhadores, para pedir emprego nas minas. Não tiveram sucesso e o protesto resultante serviu de trampolim para “El Gran Movimiento”,  que começa com os trabalhadores das minas a gritar: “Sangue dos mineiros! Coração de lutador! ”.

O cinema já estava morto sem os festivais

Se cada vez há mais “conteúdos” audiovisuais disponíveis em várias plataformas, Russo crê que paralelamente se discute e se mostra menos novas formas de expansão da linguagem cinematográfica, sendo os festivais de cinema essenciais para manter o que resta da 7ª arte viva: “O cinema já estava morto sem os festivais ”, diz-nos, completando o seu raciocínio ao afirmar que é mais importante que nunca lutar pela linguagem cinematográfica, até porque hoje em dia toda a gente anda com uma câmara de filmar no bolso: “As grandes empresas não se interessam minimamente por nada disto. Apenas lhes interessa catalogar este ou aquele conteúdo. Não há um pensamento cinematográfico neles, a única coisa que interessa é o dinheiro. É triste, mas é real.”

Quanto ao seu futuro, o realizador admite ter um novo projeto para encerrar a sua “trilogia mineira”, mas não tem pressa a avançar com ele, pois agora que lançou “El Gran Movimiento” é altura de refletir sobre as escolhas e também sobre o futuro, numa altura em que se equaciona na América Latina e em todo o mundo o que será do cinema. E ao contrário de muitos cineastas, Kiro Russo também não vê uma urgência em ter de filmar a cada ano ou oportunidade: “Só deves filmar se existe algo realmente importante para falar e que tenha o peso dos tempos. Vivo no cinema com muito pouco dinheiro e se vir que não há nada que queira realmente dizer, não avanço. Faço outra coisa. Fazer um filme atrás do outro sem nada de novo para dizer parece-me também negativo para o cinema, como cinema. Ainda mais agora que se coloca em questão do que é cinema, num nível extremo, por causa da situação instável das salas. As salas, em muito poucos anos, transformaram-se em algo muito velho. Creio que as novas gerações já não irão a elas, salvo para ver certas coisas. A pandemia acelerou todo esse processo. Sinceramente acho que ninguém tem tanto a dizer para fazer 2 ou 3 filmes por ano. Há cineastas que não entendo como fazem, como o Hong Sang-soo, que faz 1 ou 2 filmes por ano. Bem, na verdade entendo porque faz sempre o mesmo filme. Mas fazer cinema é muito trabalhoso”.

[Entrevista originalmente publicada a 25 setembro de 2021]

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