Sábado, 18 Maio

“Os Ciganos não são uma atração”: Tony Gatlif fala de “Tom Medina”

"Tom Medina" estreia nos cinemas a 6 de janeiro

Presente em Cannes com o seu mais recente filme, o profundamente autobiográfico “Tom Medina”, o realizador franco-argelino Tony Gatlif explicou ao C7nema numa entrevista porque continua há décadas a retratar a comunidade roma de forma real e não através de representações muitas vezes sórdidas como as que surge no cinema de Emir Kusturica. “Não gosto dos filmes dele porque ele trata os ciganos como joguetes. Ele não sabe nada sobre os ciganos, apenas viu aquilo lá no bairro dele, não sei se em Belgrado ou noutro sítio. Para ele, os ciganos são como brinquedos. Eu quando olho para os ciganos no mundo inteiro, não olho para eles como joguetes. Eles não são uma atracção. Há uma profundidade e uma grande dor neles presente nos meus filmes. Eles não são sórdidos nem lamentáveis. Os ciganos que abordo são rejeitados e tratados pior que os animais pela sociedade. E isso é inaceitável.” 

Depois de ainda na década de 1970 realizar “La Tête en ruine” (1975) e “La Terre au ventre” (1978), Gatlif entrou na década de 1980 a focar a sua atenção nos ciganos, assinando obras como “Canta Gitano” (1981), “Latcho Drom” (1993), “Gadjo dilo” (1997) e “Exils” (2004), os quais lhe trouxeram considerável sucesso.

Descrito por certos meios internacionais como uma “anomalia” no cinema gaulês, Tony Gatlif exibiu “Tom Medina” em plena praia Cannoise, numa exibição seguida de uma festa que celebrava não apenas a estreia do filme, mas também alguma liberdade após meses e meses de pandemia.

Sobre o seu projeto, inspirado na sua adolescência, o cineasta disse-nos. “É uma história que vivi quando tinha 12 ou 13 anos. Foi graças a essa história que saí da condição de miséria em que vivia. Uma história na qual batalhei contra o meu destino”.

Gatlif escolheu David Murgia (Rundskop; Todos os Sonhos do Mundo) para o protagonismo. Aqui ele é Tom Medina, jovem que aparece em liberdade condicional à porta de Ulisses (Slimane Dazi), o homem que o vai tentar ajudar a seguir um rumo na vida. Tom sonha em se tornar uma boa pessoa, mas a hostilidade geral lançada na sua direção vai dificultar a sua tarefa: “Gosto bastante do David Murgia e ele faz-me lembrar um pouco como eu era. Não fisicamente, pois não queria de todo que fosse apenas e só uma história autobiográfica. Acho esse tipo de filmes biográficos um pouco uma armadilha, que nos prende [criativamente], um pouco como acontece nos filmes históricos. O David exprime muitos sentimentos e está sempre cheio de movimentos e maneirismos. Eu era um pouco assim”. 


Tony Gatlif, Karoline Rose Sun, Slimane Dazi, David Murgia em Cannes

Voltando aos seus tempos de adolescência, o realizador recorda quando chegou a França na década de 1960, perdeu os pais e meteu-se em pequenos roubos. “Evidentemente e após 2 ou 3 anos nisto, a polícia prendeu-me e entrei na rota da justiça, nos centros de delinquentes. Foi isso que mudou a minha vida. Conheci num desses centros um homem formidável, um mestre que respeitava muito. Ouvi-o e respeitei-o. Antes disso não respeitava ninguém, pois a sociedade também não o fazia. Só a partir desse ponto percebi o que era ser um homem na sociedade, ter um papel nela. Foi graças a isso que me vi em Camarga. No meu dossier penal, o juiz leu que era alguém que amava cavalos. Na verdade, foi o que disse num enorme questionário quando fui preso. No tal centro de detenção, leram também isso e o meu mestre pôs-me a trabalhar com cavalos. Comecei a ficar muito impressionado com um ‘cowboy’ que lá estava que parecia o Charles Bronson (risos). Tinha uma cicatriz na cara e era muito duro. Foi alguém que respeitei muito. Como estava na Camarga, respeitei tambéma região. Amava todo aquele ambiente selvagem, os cavalos e outros animais. A Camarga salvou-me da selvajaria dos homens. Foi aí que me encontrei e também dei de caras com um país que não é a França. Não, não é a França. Este é um local livre, selvagem, mas evidentemente também com regras. França é Paris, a Côte d’azur. Aquilo não era essa França. A Camarga tornou-se o meu país imaginário, onde podia estar tranquilo.

Embora carregado de um olhar realista, Gatlif embarca desta vez em “Tom Medina” por terrenos mágicos, todos eles circunscritos a um touro branco que surge frequentemente como uma representação dos desafios e forças que Tom Medina terá de enfrentar e respeitar. “Na Camarga, aquilo que ainda hoje me interessa é a sua força incrível. O Tom Medina bate-se contra o seu destino. Essa criatura, esse touro que é real, simboliza uma força que obriga o Tom a respeitá-la. É algo mágico e há muita magia e mistério na Camarga. Uma força telúrica. Trabalhei com o diretor de fotografia, Patrick Ghiringhelli, e disse-lhe para filmar o que não se via. (…) Quando o Tom Medina vê aquele touro branco selvagem, com cerca de 700 Kg, pela primeira vez, ele sente que há uma força que terá de respeitar. Era preciso filmar esse animal de uma forma ‘mágica’. Eu disse-lhe que queria que essa aparição do touro fosse como uma aparição de Deus, Jesus Cristo, ou da Virgem Maria em Fátima. Filmei essa cena como se fosse a descida de Cristo à terra com a sua aura. Naquele momento, aquilo que vemos não é um touro ou Deus. É outra coisa, algo muito positivo, uma força que tem uma mensagem para o Tom”.

(Artigo originalmente publicado em julho de 2021)

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