Sábado, 18 Maio

A Última Floresta: “a resistência do cinema brasileiro e dos povos indígenas contra um projeto totalitário e fascista”

Ao receber o prémio de júri popular no encerramento da Summer Edition da 71ª Berlinale, no domingo, por “A Última Floresta”, o guionista cineasta paulista Luiz Bolognesi destacou a força dos povos originários do Brasil e a vulnerabilidade em que as terras deles se encontram sob o jugo dos latifundiários, à sombra de uma presidência apelidada de genocida por uma grande parcela do seu povo: “Esse prémio é muito importante não só para nós que fizemos o filme, mas para o cinema brasileiro – que fez aniversário nesse dia 19, – e sobretudo para a imagem dos povos indígenas, dos povos Yanomami, que estão sob ataque nesse momento, lutando contra uma invasão de mais de 20 mil garimpeiros ao seu território. É fundamental que a imagem do filme rode os países e o planeta para que a gente possa fazer pressão para a retirada desses invasores ilegais tanto das terras dos Yanomamis como das terras dos Munduruku. Esse prêmio significa que o mundo está de olho e eu espero que o governo brasileiro cumpra a constituição e retire esses invasores da terra legalmente constituída e de direito dos Yanomami. É urgente que a gente pare o genocídio indígena imediatamente”, disse Bolognesi, sinónimo vivo de guiões da mais sofisticada carpintaria narrativa, como “Bicho de Sete Cabeças” (2000).

Aos 55 anos, ele já desfrutava de prestígio internacional, como realizador, na seara da animação, quando conquistou o troféu Cristal, no Festival de Annecy, em França, em 2013, com “Uma História de Amor e Fúria”. Cinco anos depois, veio a sua consagração como realizador de documentários, ao sair do Festival de Berlim com uma menção honrosa por “Ex-Pajé”, também focado na realidade indígena. Em março, quando a Berlinale promoveu as suas competições e mostras paralelas online, ele saiu aclamado por “A Última Floresta”. Na sua narrativa, Bolognesi retrata o quotidiano de um grupo Yanomami isolado, que vive num território ao norte do Brasil e ao sul da Venezuela há mais de mil anos. O seu xamã, Davi Kopenawa Yanomami, procura proteger as tradições da sua comunidade e contá-las para o homem branco que, segundo ele, nunca os viu, nem os ouviu.

Luiz Bolognesi


Em junho “A Última Floresta” também conquistou o prêmio de Melhor Filme no 18º Seoul Eco Film Festival, na Coreia do Sul, e foi exibido no DocsBarcelona – Festival Internacional de Documentários, em Espanha, em maio. Passeou ainda pelo Wairoa Maori Film Festival, na Nova Zelândia, e pelo Biografilm Festival, na Itália, em junho. No Brasil, teve sessões no Festival Pachamama, em maio, e em junho, passou no Festival Internacional Imagem dos Povos e na Mostra Ecofalante de Cinema, durante a Semana do Meio Ambiente. A primeira sessão em telas brasileiras ocorreu no 26º É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários 2021. A longa-metragem também foi exibida nos festivais Visions du Réel, na Suíça, e no Hot Docs, no Canadá. Na entrevista a seguir, Bolognei conta ao C7nema detalhes da sua peregrinação pelos canteiros da não ficção e pelo terreiro da sabedoria indígena. 

Como é o Brasil de Davi Kopenawa e o que esse país reflete sobre invisibilidade e resistência?

O Brasil do Davi Kopenawa não é um Brasil de 500 anos. É um Brasil de 4 mil anos. É um Brasil em que não há privilégios, não há vértices. As cidades são redondas, as casas são iguais. É um país que sabe se defender. É um Brasil que resiste e não aceita a invasão evangélica e a destruição da sua cosmogonia, a sua cosmologia, a sua sabedoria cientifica, mítica e religiosa. Esse Brasil resiste à invasão do fetiche da mercadoria. Como o próprio Davi Kopenawa define: “nós estamos enfeitiçados pela mercadoria, não pensamos em nada, estamos destruindo tudo e vamos deixar nossos netos morrerem de sede”. Esse é o Brasil de Davi Kopenawa. Um Brasil que resiste e procura viver da forma mais moderna que existe no planeta, sendo sustentável. Um Brasil em que as comunidades são pequenas, com no máximo 500 ou 400 pessoas, e são capazes de produzir fartura quando não estão em ambientes destruídos pelo homem branco. São capazes de viver em fartura económica, de saúde, cosmológica, mitológica, musical, estética e artística, sem destruir os biomas. O homem branco chega nas suas terras e diz que, para ele sobreviver, precisa destruir. Esse homem branco já destruiu, em cerca de 500 anos, 70% dos biomas originais do país. Quando os brancos chegaram, havia entre 12 e 20 milhões de Davis Kopenawas nesse país, vivendo com fartura, sem destruir os biomas, sabendo conviver ecologicamente. Sabendo preservar o que, nas palavras de Davi Kopenawa, é o maior valor que existe: a fertilidade da floresta, dos rios e do planeta.

Como foi o avanço de vocês pelo recorte geográfico que mapearam?

O nosso trabalho foi saber se aproximar de um grupo tão radical, no melhor sentido da radicalidade, que é manter as suas raízes vivas, alimentando seu corpo, sua alma, sua cosmogonia e sua filosofia. Como fazer isso? A gente mergulhou nesse universo e foi descobrindo as coisas, como o modo harmónico de eles viverem, a beleza daquela vida. Como é maravilhoso você, no final do dia, cinco horas da tarde, tomar um banho coletivo, em que vão crianças, mulheres, adultos para diferentes pontos de um rio. Tomam banho dando gargalhadas, contando as crónicas do dia como se fosse um telejornal, de um modo bem humorado. Depois, na hora de dormir, todos estão na rede. Lá do meio sempre vem alguém e faz uma pequena fala, como se fosse o ‘Jornal Nacional’. Às vezes, é uma fala engraçada, às vezes, é uma fala trazendo uma notícia importante, como a chegada do garimpo em determinada região. Às vezes é uma fala contando o sucesso da caça de algum guerreiro, ou o fracasso de algum deles, ou dando a notícia de que algum deles desapareceu. Esse foi o mergulho que fizemos e nos surpreendeu muito. São os níveis baixíssimos de stress e ansiedade, numa capacidade de viver o presente na sua plenitude, em que não há tédio, porque tudo é muito polifónico e eles têm escuta para tudo. Um caçador que fica no mato, às vezes por horas, esperando um animal passar, não precisa de um celular [telemóvel] e não fica entediado, porque fica acompanhando o caminho das formigas, uma cobra que passa, uma revoada de pássaros, um bando de macacos. Para eles, tudo tem significado. É uma forma de entender a geografia e a lógica do que está acontecendo, conectando esses acontecimentos com explicações mitológicas, que trazem para eles traduções de coisas mais profundas, como tristeza, saúde, felicidade dos filhos, sorte no amor. As coisas para eles estão conectadas e eles leem os sinais o tempo todo. Essa foi a busca do filme. Nós entendemos que tanto os mitos, quanto os sonhos, para eles, são materiais para a realidade. Não estão em uma prateleira de livros. Os seres mágicos da mitologia estão presentes na água e no ar que eles respiram. O que acontece nos sonhos para eles é real, é uma continuação do dia a dia. Eles acreditam e veem os sonhos como um acontecimento real.

Qual é a relevância de um prémio num evento como a Berlinale neste momento medieval do Brasil?

A importância de um filme brasileiro ganhar um prémio num dos mais importantes e maiores festivais do mundo – e, logo, um prémio tão importante quanto um prémio do público – é imensa para a resistência do nosso cinema. Imensa, sobretudo, num momento em que a Agência Nacional de Cinema age contra o cinema brasileiro, na medida em que não cumpre a sua finalidade, que é fomentar o cinema e redirecionar os próprios recursos que capta da própria atividade para a produção de novas obras audiovisuais. Está tudo parado e não sai quase nada. Há uma perseguição ao cinema brasileiro, tentando nos deixar sem condições de produzir. Mas, seguimos resistindo. Ganhamos mais um prémio muito importante nesse momento: a animação “Bob Cuspe – Nós Não Gostamos de Gente” ganhou um prémio numa mostra paralela do Festival de Annecy. E, ao mesmo tempo, ganhamos o prémio do público aqui no festival de Berlim. Competiamos com mais 15 filmes, entre ficção e documentário, de vários países. Filmes com qualidade incrível.

Na seleção de Berlim, eram mais de dois mil filmes inscritos. Esse ano foi bem pequeno o festival, tinha cerca de 80 filmes. Mas, é muito significativo ser contemplado pela audiência, que era predominantemente alemã, principalmente este ano, por conta da pandemia. Eu abri as três sessões em que exibimos o filme à céu aberto, em praça pública, e 90% do público era alemão. Talvez 5% fosse brasileiro, com 5% de pessoas de outros países. Eles embarcaram num filme difícil, que é de dentro para fora, que tem um tempo indígena. As pessoas que trabalham no festival vieram dizer-me que nenhum filme experimentou o que aconteceu com o nosso filme: ninguém saiu quando acabou a projeção, todo o mundo ficou até o final dos créditos.

Eu vi isso e achei que era normal. Disseram que aconteceu uma experiência de sinestesia com aquela tela gigantesca e aquele som incrível da floresta, diante da potência, beleza e da luta do Yanomamis. Ficaram absolutamente encantados. Parecia um encantamento mesmo. Depois, quando acendia a luz e colocavam os holofotes em nós, vieram aplausos infinitos. Era, evidentemente, um ritual de acolhimento e agradecimento ao nosso trabalho, mas sinto que estavam a agradecer ao cinema brasileiro e aos povos que resistem. Acho que esse filme vencer em um dos maiores festivais do mundo, hoje, é a vitória da resistência do cinema brasileiro e dos povos indígenas contra esse projeto totalitário e fascista em que estamos vivendo.


Como é que a linguagem da animação e a linguagem do documentário modificaram a sua perceção do cinema? Como é escrever um roteiro hoje, após a sua imersão no real e nas narrativas animadas?


A animação encantou-me. Foi uma jornada de anos que percorri para fazer ‘Uma História De Amor e Fúria’, encantado com a possibilidade da ausência de limites que a animação nos traz. Qualquer coisa que o roteirista imaginar pode ser desenhada no papel, a um custo proporcional a filmar uma cena na cozinha de sua casa. Animar o sobrevoo de uma nave espacial no século XXII sobre o Rio de Janeiro ou animar uma guerra entre 500 tupinambás contra 500 tupiniquins, na praia, no século XV, sai pelo mesmo preço de filmar uma cena de um casal na sala de casa.

Isso interessava-me na animação, como contador de histórias. Além disso, a linguagem da animação é muito aberta. Nós podemos soltar os nossos sonhos e trazer para as cenas os mitos e as fantasias psicológicas, eróticas e sensuais, apocalípticas, utópicas, diatópicas. Todas as fantasias cabem na animação muito bem. Não é o mesmo caso do live action, onde a chance de ficar constrangedor é imensa. A animação acolhe. E era isso que me interessava. É um extremo do cinema.No outro extremo, está o documentário. Não vejo o documentário como uma oposição à ficção. Cada vez mais a fronteira entre documentário e ficção é imperceptível e difícil de dizer.

Nos meus dois filmes, há atores e cenas construídas. Contamos a história que aconteceu semanas antes e eles interpretam. A questão não é o dispositivo de filmagem. Não é que uma coisa é verdadeira e outra é falsa, tudo é verdadeiro e tudo é construção. A grande diferença dá-se na abordagem: no documentário, o nosso objetivo é nos aproximar e traduzir o real e, não, inventá-lo. Esse é o bom do documentário. Claro que, para traduzir o real, você pode ficcionar, como fiz, mas você está em busca de trazer e encontrar o que é real. Aliás… o que é real? Também essa fronteira alarga-se quando vamos trabalhar com os povos originais do Brasil. No sentido que, para eles, o real é diferente que é para nós. Para eles, um ser encantado do fundo do rio que, por falta de homens na sua aldeia subaquática, precisa subir à terra e encontrar pessoas na floresta e leva-las para o fundo do rio, é absolutamente real. Nessa busca do real, que o documentário nos proporciona, tenho trabalhado nesse ambiente em que a realidade está extremamente expandida, se comparada com a nossa. É como se o Universo fosse maior e tivessem a terceira dimensão no dia a dia. Isso aprece um pouco no “Ex-Pajé” e muito no “A Última Floresta”.

Como isso se passa na prática?

Teve um dia em que sai com um caçador de manhã. Encontrei-me com às cinco e meia. Ele falou-me que estava exausto. Falou que passou a noite inteira sendo perseguido por uma onça, na verdade sonhou com a onça, a noite inteira. Tem muitos significados, pois estava bastante nervoso, ofegante e muito alerta. Não é que ele achava que a onça poderia vir. A onça já tinha vindo e ele passou a noite correndo dela.

Comecei a entender que isso era real e verdade, portanto pode ser filmado. A grande dificuldade é como filmar mitos e sonhos, e os brancos entenderem isso. Foi um risco que comprei e deu certo. Ganhamos prémio num festival na Coreia, que, hoje, é um dos lugares mais interessantes de produção de cinema atual, e nós acabamos de ganhar esse prémio em Berlim. E as críticas têm sido muito positivas.

Você virou uma das mais disputadas grifes de roteiro no país. Como é o seu método de escrita? Trabalha com “writers room“? Quais são as fragilidades do roteiro no nosso cinema?

De modo algum me vejo como uma grife. Não vejo isso e não sinto isso. Agradeço e entendo a ideia da pergunta de querer dizer que sou um roteirista reconhecido… isso concordo. Mas acho que o meu trabalho não tem uma característica única, ele é bem confuso e difícil de entender. Às vezes, está num lugar de cinema de nicho e, noutros momentos, é mais amigável ao grande público.

Faço filmes que saem em mais de 150, 200, 300 salas num shopping. Seja “Bingo”, “Elis”, “Como Nossos Pais”, “Bicho de Sete Cabeças”. Vejo-me nesse lugar, de alguém que faz um cinema de incómodo. Não é um cinema apenas de entretenimento. Claro que todo o cinema precisa ser acolhedor em algum lugar, ele é feito para entreter, mas não termina aí o cinema que me interessa. O cinema que me interessa termina incomodando-me, trazendo angustias e perguntas, as pessoas saem mexidas ou não conseguem tirar o rabo da cadeira no final, por estarem meio chapadas e magoadas. Às vezes vem uma catarse, como em “Bicho de Sete Cabeças”, em que nos emocionamos no final. Outras vezes, ficas ainda mais remoído por ter contacto com realidades profundas e diferentes daquelsa com que você se identifica. É um cinema que tenta trazer reflexão. Esse é o meu principal objetivo. Como roteirista, comecei a trabalhar em writers’ room. Acabei de desenvolver duas séries, uma para a Amazon e outra para Netflix, que não posso anunciar, pois, por contrato, eles é que precisam de anunciar. Fiz todo o trabalho inicial dessa série e deixei a equipa trabalhando na escrita final dos roteiros. Estou trabalhando com os meus filmes e com alguns projetos também.

Tenho trabalhado como roteirista para outros diretores, o que é muito rico para mim, mas é diferente do meu trabalho pessoal, em que tomo todas as decisões. Quando trabalho para outro realizador, ou para uma companhia estrangeira com sede no Brasil, sei que a grande diferença está no facto de a decisão não ser minha. É evidente que sofro muito com isso e muitas vezes isso dá-me uma angústia profunda. Às vezes, as correções que me solicitam para fazer no caminho são grandes formas de aprendizagem para mim. Muitas vezes, percebo que estava indo para um caminho ruim e o toque do realizador – ou mesmo desses consultores de roteiro dessas companhias que citei – são uma forma de aprender. Percebo que estão corrigindo falhas e melhorando. Mas, às vezes, não. E isso gera-me profunda angústia, porque sinto que estão a pedir mudanças que são piores do que eu estava a fazer ou que vão desandar o projeto. Personagens vão desandar ou facilitar, a tal ponto de se tornarem mais frágeis e menos complexas. Quando estou a fazer o meu próprio filme, tomo as escolhas e prefiro cometer os meus próprios erros que cometer os erros dos outros. Tenho prazer de estar a trabalhar com outros realizadores e empresas, porque a diversidade me inspira muito. O Brasil precisa dela.

Quais são os seus atuais passos no cinema hoje, como roteirista e como realizador?

Estou para lançar uma outra série, produzida pelos irmãos Gullane, com a HBO, sobre funk. Chama-se “Funk.Doc” e está nos últimos detalhes de finalização. Deve ser lançada na HBO no segundo semestre. Estou desenvolvendo ainda um projeto inicial de outra série, também documental, também com a Gullane. Tenho um projeto de uma nova longa-metragem, nessa linha ficção + documentário e com questões indígenas. Estou com o roteiro pronto e vou começar a viabilizar as filmagens dele. Acredito que o prémio de Berlim vai ajudar também.

Notícias