Segunda-feira, 6 Maio

Berlinale: O pulsar do mundo em 7 filmes

Numa das cidades mais multiculturais do planeta, Berlim, o seu festival de cinema sempre dedicou um largo espaço para que as realidades sociais, políticas e identitárias de vários pontos do globo tivessem espaço no grande ecrã. Com dezenas e dezenas de obras que poderiam se enquadrar naquilo que chamamos de “Pulsar do Mundo“, escolhemos 7 filmes que são autênticas viagens a diversas realidades.

Questões como a memória da guerra e o seu impacto até hoje, a luta contra corrupção, gentrificação, identidade nacional, violência e problemas de infraestruturas são exemplos de temas que compõem os 7 filmes que escolhemos, muito deles que mostram um drama coletivo a partir de experiências pessoais. De Moçambique ao Líbano, passando pela Turquia, Ucrânia, Congo, Peru e Kosovo, aqui ficam as nossas escolhas:

Diaries of Lebanon

Filmado durante quatro anos e seguindo principalmente três personagens – a poetisa e ativista Joumana, eleita para o parlamento libanês, mas fraudulentamente arredada dessa vitória; Georges, Veterano da Guerra Civil Libanesa com muitas memórias e segredos do passado guardados a sete chaves na sua mente; e Perla Joe, uma destemida mulher que se torna um símbolo da revolta contra um sistema político corrupto-, a jovem cineasta Myriam El Hajj captura com precisão, na forma de diários documentais, o estado de ebulição da política libanesa, bem como o odor que paira no ar “de uma necessidade urgente de mudança. 

O filme nasceu da necessidade de mudança. E está no ar essa atmosfera de mudança”, disse-nos a realizadora em Berlim, principalmente por causa da nova geração que acredita que está empenhada em tentar mudar as coisas por dentro, via a política.” Há muita raiva, a qual espero que traga mudanças pois vivemos há 40 anos com os mesmos políticos no poder. Ter raiva, isoladamente, não resolve nada. E podemos dizer que essa raiva já teve resultados, pois trouxe pessoas para a rua a protestar. Aconteceu uma revolução (…) e uma das coisas que essa revolução trouxe foi a liberdade de expressão. As pessoas podiam gritar e dizer o nome dos políticos a criticar”.

Assumindo que só uniu as personagens no seu filme através da montagem, Myriam começou a idealizar o projeto a partir de Georges. “Só depois escolhi a Jumana e a Perla, mas não sabia ainda como os juntar. Nunca vemos os três juntos, apenas a Perla e Jumana se encontram uma vez. Aquilo que os unia era a ordem cronológica dos eventos no país. Isso é que os juntou“.

Diaries of Lebanon” foi exibido na secção Panorama Dokumente.


A Bit of a Stranger

Analisando as experiências de diferentes gerações de mulheres com a “Russificação” da sua identidade, a realizadora ucraniana Svitlana Lishchynska traz até ao espectador um drama documental de enorme espessura pessoal e coletiva, que revela as artimanhas imperialistas iniciadas no período soviético e prolongadas com a invasão da Ucrânia por parte da Federação Russa. 

Reconhecendo que o projeto mudou muito desde o início, pois antes da invasão a larga escala do país ela queria apenas falar em termos gerais da Russificação da zona da Crimeia, Lishchynska, natural de Mariupol, decidiu pegar na sua família para expandir a ideia das dificuldades dos ucranianos em viverem a sua própria identidade. “Falando de várias gerações da minha família, acompanhava com maior atenção o que estava a acontecer na minha região com a invasão, tornando-se assim este o tópico principal“, explicou-nos Svitlana, que tem esperança que um dia a autointitulada federação russa aja como tal, ou seja, com ideias mais autónomas e independentes em relação às regiões que geograficamente a compõem, bem como com os seus vizinhos, sem os querer dominar. Lishchynska assinou assim um registo sentido e de extrema relevância, sempre entre Mariupol, onde se situa, e Londres, onde a filha se exilou, dando particular atenção à história da sua mãe, de 77 anos, que já passou por diversos regimes que dominaram e tentaram secar a identidade ucraniana.

A Bit of a Stranger” foi exibido na secção Panorama Dokumente.


Tongo Saa

Retrato cuidado e incisivo dos problemas e sonhos dos residentes de Kinshasa, fustigados pela violência, superstição e constantes faltas de eletricidade, “Tongo Saa” é uma curiosa incursão do congolês Nelson Makengo sobre como a ausência de “luz” impacta no dia a dia a capital e os seus 17 milhões de habitantes. 

Enquanto a rádio e televisão anunciam a construção de uma mega barragem que parece ser a solução para todos os males do país, Kudi tenta mobilizar os moradores do seu bairro a arrecadar dinheiro para um novo cabo de energia. Já no Monte Mangengenge, um Pastor compara a eletricidade à luz de Cristo como o caminho para a vida e salvação, enquanto Davido procura um espaço para ficar depois da sua casa ser inundada pelo rio Congo.

Segundo Nelson Makengo, a ideia surgiu quando, em 2016, viajou pela primeira vez para fora do seu país: “Fui para Paris e aí fiquei durante uns tempos, numa atmosfera cheia de jovens como eu. Nesse tempo que estive lá, 3 meses concretamente, nunca houve um corte ou apagão da eletricidade. Já tinha ideias de voltar ao Congo, foi aí que começou a minha reflexão sobre este tema da eletricidade  e falta dela e como isso tem impacto na vida das pessoas. Pensei muito em termos fotográficos como sustentar a minha meditação  sobre as noites do Congo, mas foi no poder das palavras que nasceu a ideia de fazer um filme. Primeiro uma curta-metragem, que foi apresentada no IDFA em 2019, até chegarmos a esta longa-metragem”.

Tango Saa” foi exibido na secção Panorama Dokumente.


Raiz

Passado numa região interior do Peru onde ainda perduram grandes diferenças sociais, entre os que resistem nas zonas rurais e os que moram já nas cidades, e sempre entre o humor e o drama social, “Raiz” segue de perto os desafios, medos e paixões do pequeno Feliciano, um rapazinho de 8 anos que encontrou num alpaca chamado Ronaldo (sim, referência a CR7) e num cão que responde por Rambo dois companheiros inseparáveis no seu dia a dia solitário. 

E enquanto as pessoas da sua aldeia lutam para manter a mineração que envenena as terras e riachos longe do local, Feliciano acompanha ferozmente a classificação para o Mundial da Rússia em 2018 e pede ajuda à montanha para encontrar os seus amigos após estes serem atacados por um grupo que ambiciona que os aldeões aceitem a mineração.

A ideia nasceu quando estávamos na fase de apuramento para o Mundial da Rússia em 2018 e vi um pequeno rapaz a ouvir o relato do jogo numa rádio”, disse-nos em Berlim a argumentista alemã, radicada no Peru, Annemarie Gunkel. Foi ela, em conjunto com a peruana Alicia Quispe, que deram vida a uma história que põe em cima da mesa a disparidade de modos de vida na região. “A imagem desse miúdo teve um grande impacto em mim, pois apenas a uns km de distância as pessoas podiam ver o jogo num grande ecrã. Isso mostra muito bem as diferenças sociais no Peru. Eu conhecia bem a realidade daquela área e as pessoas que vivem aqui sofrem sempre com a pressão e os perigos da mineração. Tentei combinar estas realidades no filme”.

Raiz” foi exibido na secção Generation Kplus.


Faruk 

Filmado em locais reais e baseado em personagens e eventos também eles reais, o novo filme de Aslı Özge mostra como a gentrificação, a corrupção política e o especulativo mercado imobiliário afetam a metrópole de Istambul. Mas ao escolher o próprio pai, na casa dos 90 anos, como protagonista, o que era um objeto sobre as transformações urbanas na cidade turca rapidamente se torna numa análise às complexidades do relacionamento entre pai e filha.

Foi há cerca de dez anos que comecei a prestar atenção a esta questão da gentrificação com a demolição de edifícios e a construção de outros”, disse-nos a cineasta em Berlim, onde o seu filme teve a sua estreia mundial. “Comecei assim por me interessar por esta transformação urbana em Istambul, com muita gente a tentar tirar partido dela, Novos blocos de apartamentos, centros comerciais, etc, surgem e a única maneira de ganharem vida é a partir da demolição de outros edifícios. Ora, vivem pessoas nesses edifícios e eles tentam tirar, principalmente, as pessoas mais velhas, para substituir por mais novos que tendem a consumir mais nos novos espaços comerciais que criam.”  Porém, aliado a isto, surgiu então a personagem do pai no centro dos eventos, explicando a cineasta como aconteceu essa escolha: “As primeiras pessoas a verem sempre os meus filmes fazem parte da minha família. Tudo nasceu de uma piada entre o meu tio e o meu pai, sobre a presença dele num dos meus filmes. Foi aí que o introduzi no guião, enquadrando-o no tema, evoluindo depois o filme para uma análise da nossa relação no meio daquelas situações”.

Faruk” foi exibido na secção Panorama.


Afterwar

Como qualquer guerra, a do Kosovo deixou marcas nos seus cidadão  e feridas que vão demorar a cicatrizar. Ciente disso, e tendo como base a sua curta-metragem exibida na Berlinale em 2010, “Out of Love”, Birgitte Stærmose revisita os jovens presentes nela, as suas memórias, sonhos e ambições, sempre entre o real e o ensaiado, dando uma imagem sobre as repercussões da guerra a longo prazo do ponto de vista existencial.

“Nunca pensei fazer um filme que acompanhasse durante 15 anos estas personagens. Fiz o primeiro filme e pensei: é só isto.”, explicou-nos a cineasta em Berlim, viajando novamente à produção de 2010 que abriu as portas a esta nova proposta. “Esse filme foi uma experiência muito poderosa e os miúdos tiveram um grande impacto em mim. Peguei neles novamente para esta nova experiência cinematográfica, a qual me dava uma enorme liberdade para criar”. 

Enfatizando que antigamente os realizadores eram muito mais livres para criar e filmar, Birgitte sublinha que agora é tudo mais estruturado, seja pela dependência da existência de um guião, seja pela necessidade de financiamento. “Essas filmagens foram completamente livres, pois não havia uma estrutura rígida a seguir, nem produtores acima de nós a quem responder. Foi um trabalho muito, muito livre. Claro que ao longo destes quinze anos fui acompanhando o crescimento deles, à distância, ajudando-os como podia.  Agora, com um bocadinho mais de financiamento e um projeto mais estruturado, voltei a falar com eles e perguntei se estavam interessados em continuar e surgir novamente, anos depois, perante as câmaras. (…) E tinham a liberdade de dizerem o que queriam e não queriam, pois existiam sempre coisas que eles mostravam não estar à vontade para expor perante as câmaras”.

Faruk” foi exibido na secção Panorama Dokumente.


As Noites Ainda Cheiram a Pólvora

Também com as memórias de uma guerra civil (que durou de 1977 a 1992) como pano de fundo, Inadelso Cossa viaja até a aldeia da avó para revisitar as histórias que opuseram a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) e a Resistência Nacional Moçambicana (RENAMO). Num exercício de preservação da memória histórica do país, mas também a pessoal em relação à avó, que começa a dar sinais de perda das nefastas lembranças do passado, Inadelso – fugindo do formato típico que varia entre imagens de arquivo e entrevistas – faz um trabalho refrescante entre o documentário e a ficção, o qual, acima de tudo, põe em cima da mesa a discussão de um tabu nacional. Sobre isso, o cineasta comentou: “Queria fazer parte daquele espaço, como neto e, ao mesmo tempo, como realizador que está preocupado com a memória que ele não tem, mas que avó tem, ainda que esteja perde-la . E a única coisa que ela se lembra desses tempos é do marido, o meu avô. A ausência dele é também um buraco enorme na sua vida. A noite foi o espaço para criar essa atmosfera. A noite é o que dá sentido ao filme, não porque está no título, mas porque era o período em que as atrocidades da guerra civil aconteciam. Felizmente, fui protegido disso, mas muitas outras crianças não tiveram essa proteção. Algo importante era pensar até que ponto é que os nossos pais e o próprio país inventaram os contos de fadas que nos contavam para nos proteger da guerra. O grande problema de tudo isto é que nunca houve realmente uma reconciliação entre os moçambicanos depois da guerra. De certa maneira, sinto que faço parte dessa reconciliação.”

As Noites Ainda Cheiram a Pólvora” foi exibido na secção Forum.

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