Sábado, 18 Maio

Terry Gilliam: “O politicamente correto está a reduzir as formas de perceção da realidade”

O grande realizador americano acha que o ensolarado dia em Lisboa é perfeito para o lançamento em Portugal de “O Homem que Matou Dom Quixote” – obra que estreia nas salas a 17 de fevereiro. Terry Gilliam, acompanhado da atriz Joana Ribeiro, esteve na capital portuguesa em amena conversa com jornalistas, na qual o C7nema marcou presença, no pátio da residência do embaixador britânico, na Ajuda.

Quatro anos passaram-se desde o término das filmagens. Depois de uma tumultuada produção, o filme estreou em Cannes em 2018 cercado de controvérsias e ações judiciais envolvendo Paulo Branco. O produtor português merecerá de Gilliam um ou outro comentário sarcástico (“arruinou alguns anos da minha vida, mas isso tudo já é passado”) – para além de ser responsabilizado pelo facto de Portugal ser “o último país do mundo” a ver o filme lançado.

Mas, de resto, o colóquio não girou em torno desses tristes episódios, mas de um projeto que, depois de um período que antecede largamente o referido acontecimento em Cannes (teve início em… 1989!), finalmente se viu realizado. “No final das contas hoje já não há interesse para mim falar disto. Foi um longo período em que o projeto falhou, voltou a crescer, para cair novamente. Mas agora está feito. Isso é o que importa”.

Receções mistas

A propósito da sua receção, aliás, o cineasta não se furta de comentar: “Há gente que morre de medo ao ler que o seu filme teve ‘mixed reviews’. Eu não: quando um filme tem receção unânime, significa que muita gente achou que ele era ‘OK’. Mas eu não quero fazer filmes ‘OK’: ou as pessoas realmente gostam ou detestam – que eu não me importo”.

O cavaleiro que não diz “ni”

O enredo da obra gira em torno do cineasta Toby (Adam Driver) que, como tantas vezes nas obras de Gilliam, se vê envolvido num bizarro “loop” fantástico do qual não consegue sair. Toby filmava um anúncio que tinha por inspiração a famosa obra de Miguel de Cervantes e, quando retorna à aldeia onde o realizou, dez anos depois, é vigorosamente perseguido pelo ator do filme (Jonathan Pryce) – um velhote que vegetava por lá e agora acredita firmemente que é Dom Quixote. Entre o presente e a ficção, o restante é uma movimentada história envolvendo mafiosos russos, empresários gananciosos e Dulcineia (Joana Ribeiro) – aqui reconstruída como uma lutadora “wannabe” – já que no livro era apenas uma prostituta.

Joana Ribeiro| Foto por Paulo Fernandes

Os media e a destruição da diversidade

Não espanta que filmar uma personagem caracterizada por imaginar coisas onde elas não existem e, assim, transformar a realidade de forma poética se tenha tornado uma das grandes ambições de Gilliam. É mesmo daqueles casos para dizer que ele nasceu para fazer este filme.

O seu ponto de vista, neste sentido, é de uma espantosa precisão – num mundo onde, na maioria do tempo, são os media a ditar noções do que é a “realidade”. “Com isso o mundo torna-se cada vez menor – facto agravado pelo politicamente correto, que está a reduzir ainda mais a forma como vemos o mundo”. O realizador aprofunda essa ideia. “É triste vermos hoje tantas formas de constranger as perceções que podemos ter do mundo – o que nos leva a viver em ‘tribos’. Nos anos 60, por exemplo, a nossa visão era expandir, incluir. É triste ver que agora as pessoas fecham-se em pequenos grupos, onde elas têm a razão e os outros não importam”.

“Não gosto do ‘Black Panther‘”

Por falar em representações, uma última queixa do cineasta vindo dos gloriosos Monty Python vai para… “Black Panther”. A ideia é que há uma grande diferença entre sugerir a interação com múltiplas realidades e as fantasias infantis estilo Disney/Marvel – que acabam por ser dominantes mesmo entre adultos. “Não gosto do Black Panther. Há tantos heróis negros de verdade, pessoas como Rosa Parks* e uma lista infindável de nomes que poderiam representar modelos aos garotos negros. Não é preciso essa fantochada dos super poderes”.

*Rosa Parks foi uma costureira que, em 1955, recusou-se a dar o seu lugar a um branco no autocarro, iniciando um longo período de greves na cidade que estariam na origem da luta dos Direitos Civis

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