San Sebastián dedicou a tarde da mostra Perlak a Argentina, 1985, “O” fenómeno de público da sua 70ª edição, no fim de semana de abertura, esgotando o Cine Teatro Principal, com espectadores acotovelados nas cadeiras. É a força do legado do seu protagonista, Ricardo Darín. Um par de filmes do início dos anos 2000 – Nueve Reinas e El Hijo De La Novia – deram a Ricardo Alberto Darín um avanço no star system latino-americano. Ele integra um rol seleto (com Paulina García, Alfredo Castro, Sonia Braga, Edgar Ramírez, Ana de Armas, Alice Braga, Rodrigo Santoro, Pedro Pascal e Wagner Moura) cuja projeção vai além da fronteira da Pangeia centro ou sul-americana, consagrando-o como uma estrela de respeitabilidade global. Já esteve nos maiores festivais do mundo em títulos em competição e recusou-se a pegar a estrada de Hollywood, para fugir da caricatura.

Um amigo querido, que não faz parte do mundo das artes, tampouco vê os meus filmes, pergunta-me quando serei um vilão de 007, pois, na cabeça dele, enfrentar James Bond é a glória maior para quem faz cinema. Já eu faço filmes para retratar as mazelas do meu pais”, disse Darín ao C7nema em 2017, quando lançou La Cordillera”, em Cannes, ao lado do realizador Santiago Mitre. Era um thriller político que traduzia o desejo de Ricardo e de Santiago de reviver o legado da ficção que se interessa por disputas do Poder institucionalizado. Ficções que eram feitas entre os anos 1960 e 70 por Elio Petri, Francesco Rosi e Costa-Gavras, abrindo um contexto que, hoje, no seu continente, é melhor perseguido por documentaristas (Silvio Tendler, Patricio Guzmán). Não por acaso, a dupla voltou a unir forças num thriller jurídico que iniciou a sua trajetória no Festival de Veneza, na luta pelo Leão de Ouro.   

Ouviu-se no Principal de San Sebastián uma salva de palmas no fim de um discurso feito por Darín, num ponto climático de “Argentina, 1985”, a reproduzir uma retórica do promotor público Julio César Strassera (1933-2015). Nos factos reais recriados por Mitre, entre reconstituições de época e o uso de fotos e imagens de arquivo, o advogado pôs o seu pescoço na guilhotina em prol da democracia, empenhado em condenar os militares de alta patente responsáveis pela tortura em terras argentinas, durante a ditadura militar. A recriação da sua incursão pela corte fez Donostia chorar cântaros. Laureado em Veneza com o Prémio da Crítica, dado pela Federação Internacional de Imprensa Cinematográfica (Fipresci), o filme estreia na sua pátria no fim do mês e entra na programação da Amazon Prime (ou seja, cai diretamente no streaming) para o resto do mundo no dia 21 de outubro. Estima-se que ele saia do evento espanhol com a láurea de júri popular dada os títulos da Perlak, à força de sua potência dramatúrgica.


Numa busca por uma estrutura narrativa de “filme judicial”, alinhado a cartilhas herdadas dos filmes de André Cayatte (“Nous Sommes Tous Des Assassins”), Mitre e Darín dão carne e alma à reconstituição da peleja judicial encampada por Strassera, de outubro de 1984 a maio de 1985, para fazer justiça aos carrascos do governo fardado de Buenos Aires e arredores, ouvindo vítimas das Forças Armadas, torturadas “em nome da Lei”.

Contrariando as ameaças telefónicas dirigidas a ele e aos seus filhos, o promotor entrou para a História como um herói do processo democrático. Darín encarna esse heroísmo com humanidade, de maneira dialética, numa atuação que pode leva-lo ao Oscar. Numa das melhores frases, pinçada dos diálogos escritos por Mitre e Mariano Llinás, Darín diz: “A tortura não é estratégia política. É perversão moral”. Na fotografia de Javier Julia, há um trabalho de luz protocolar, mas, funcional. Já a montagem de Andrés P. Estrada foge de normas, valorizando o suspense e a dimensão melodramática do heroísmo, num equilíbrio incomum, e louvável.

Pontuação Geral
Rodrigo Fonseca
Jorge Pereira
argentina-1985-veias-abertas-pela-fardaNuma busca por uma estrutura narrativa de “filme judicial”, alinhado a cartilhas herdadas dos filmes de André Cayatte, Mitre e Darín dão carne e alma à reconstituição da peleja judicial encampada por Strassera, de outubro de 1984 a maio de 1985.