Quarta-feira, 1 Maio

Academia Portuguesa de Cinema: nem leviandade, nem desconhecimento, mas muita ingenuidade (Opinião)

Não está em causa o facto de "Listen" ser um candidato melhor ou pior que os outros três filmes pré-selecionados, mas o ser inelegível à partida para a nomeação na categoria de Melhor Filme Internacional

Um dia depois de Ana Rocha ter dito na SIC que “Listen” não concorre ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro porque triunfou a matemática, num artigo publicado hoje no Jornal Público, com o título “A Febre do Ouro”, Paulo Trancoso, presidente da Academia Portuguesa de Cinema (APC), afasta o cenário de “leviandade” ou “desconhecimento das regras” na escolha daquele filme, por parte da sua instituição, como o candidato português ao Oscar de Melhor Filme Internacional.

Já ontem, num comunicado da Academia divulgado à imprensa, Trancoso dizia: “Ainda na fase de consideração de todos os filmes nacionais potencialmente elegíveis contactámos a AMPAS no sentido de obter esclarecimentos que fundamentassem a decisão de excluir ou incluir o filme de Ana Rocha de Sousa da lista de candidatos em consideração. Em resposta à APC, a AMPAS comunicou que apenas poderiam deliberar sobre a elegibilidade de um filme após o encerramento do prazo regular de submissões, existindo sempre a possibilidade de submeter um novo candidato caso o primeiro fosse rejeitado. Atendendo ao facto de que o filme justifica o recurso à língua inglesa por retratar a história de um casal imigrante português em Londres, e que uma parte considerável do mesmo tem diálogos em português e em língua gestual, o filme foi pré-selecionado pelo comité de seleção e acabou por ser o mais votado pelos membros da APC. Sabíamos que a aceitação do filme enquanto candidato de Portugal dependeria da flexibilidade do comité internacional da AMPAS e estávamos confiantes de que o contexto particular desta candidatura justificaria a sua aceitação, mas no final isso acabou por não acontecer.

No texto do jornal Público, Trancoso menciona ainda uma eventual dificuldade no apuramento de uma métrica precisa dos diálogos de “Listen”,  afirmando que parte considerável do filme tem diálogos em português, em língua gestual e ainda mistos, nos quais ambos os idiomas se alternam. 

A verdade é que antes mesmo de existir a submissão do filme à AMPAS, quer a comissão de seleção (APC), quer a realizadora Ana Rocha, sabiam que “Listen” não era elegível, e isso foi dito por uma fonte muito próxima do processo, que não quer ser identificada, ao C7nema. Ainda assim, a APC decidiu avançar com a sua escolha, elaborando uma defesa – não diferente daquela que foi negada à Nigéria no ano passado, e ao Canadá ainda ontem – com um pedido de exceção à AMPAS. É aí que entra em cena o que Trancoso chama de “flexibilidade do comité internacional da AMPAS”.

Ora, as  regras da AMPAS na corrida ao Oscar de Melhor Filme Internacional são claras e não há abstrações: “a gravação da faixa de diálogo original, bem como a imagem completa deve ser predominantemente (mais de 50%) num idioma ou idiomas diferentes do inglês“. A métrica que Trancoso fala é complexa, mas intuitivamente todos sabíamos perfeitamente que o filme era predominantemente falado em inglês. E o C7nema pode mesmo dizer que nos 77 minutos de duração de “Listen”, apenas 32% dos diálogos não são em inglês. No fundo, temos 21 minutos de conversação inglesa e 10 minutos de diálogos que não são em inglês.

Esta regra da AMPAS, goste-se ou não, é particularmente importante nesta categoria específica, pois impõe que não seja o inglês – a língua dominante em todas as outras categorias dos Oscars – a triunfar.  É importante  frisar que “Listen” não foi excluído de concorrer aos Oscars, mas apenas ao prémio destinado a Melhor Filme Internacional. Aliás, se a sua distribuidora norte-americana – a Magnolia Pictures – quisesse e conseguisse, poderia ter estreado a fita a tempo em território norte-americano e (hipoteticamente) concorrer a todos os outros prémios destinados a ficção em imagem real, incluindo o ouro mais precioso da noite dos Oscars, a categoria de Melhor Filme. Na verdade, “Listen” ainda pode concorrer na cerimónia de 2022, caso estreie nos EUA em 2021, cumprindo as regras impostas pela AMPAS.

Mas o que é importante refletir em todo este imbróglio são dois pontos: a APC defendeu a sua escolha, o que é legítimo, mas tinha perfeita consciência que iria perder quando pediu um regime de exceção. Paulo Trancoso diz isso mesmo no início do seu artigo no jornal Público: “Foi com algum desânimo, mas não com total surpresa, que recebemos a notícia de que o filme Listen, primeira obra da realizadora Ana Rocha de Sousa, não terá a oportunidade de tentar trazer para Portugal o tão desejado ouro de Hollywood.”

E isto leva ao segundo elemento, que é o facto que no meio de algo que já se antevia o final, e que implicava a escolha de uma nova candidatura, atrasou-se qualquer estratégia de “campanha” para este Oscar dos outros 3 candidatos pré-selecionados: “Mosquito”; “Patrick”; e “Vitalina Varela”. Nesta coisa de Oscars, é fundamental entender o quão essencial é o “timing“, a necessidade de lóbis e bastante dinheiro para a promoção junto dos membros da AMPAS para se conseguir uma nomeação. E sim, ainda vamos a tempo de promover a escolha final e tentar ter pela primeira vez um nomeado (somos dos escassos países que nunca o conseguiu), mas houve muita ingenuidade, muita crença no contorno das regras e da matemática, perdendo-se tempo precioso no processo.

Que sirva de lição para o futuro: a AMPAS não é um organismo em que podemos usar a estratégia tão portuguesa do “dê lá um jeitinho”. É uma organização com regras claras e que não poderia “flexibilizar” as coisas ao gosto individual, pois corria o risco de ter problemas com todas as outras obras submetidas pelos diferentes territórios e que estão em conformidade com as regras. 

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