Sexta-feira, 29 Março

Vincent Carelli e o legado do cinema indígena em simpósio no seminário Na Real_Virtual

Dono de dois troféus Kikito, em Gramado, nas categorias melhor realização e filme, conquistados por “Corumbiara” (2009), documento doído sobre o extermínio dos povos originários do Brasil, o antropólogo e cineasta Vincent Carelli fez do projeto Vídeo nas Aldeias um pólo de fomento para expressão indígena no audiovisual.

Esta noite, via web, ele passa em revista seu histórico de produções e seus documentários mais icónicos, como “Martírio” (codirigido por Tatiana Almeida e Ernesto de Carvalho), de 2016, no seminário online Na Real_Virtual. Carelli fala em dupla com o cineasta Guarani Alberto Álvares. Podem ver o colóquio (19h no Brasil, 22h em Portugal) neste link: https://imaginariodigital.org.br/real-virtual/parte-2. Na conversa a seguir, Carelli conta ao C7nema sobre a importância de se registar as lutas de populações que os governos nem sempre protegem.

Que Brasil está comportado na expressão “cinema indígena”, o quanto ela é funcional, o quanto ela é perigosa e o quanto ela é plural?

A expressão “cinema indígena” refere-se a um processo emergente de apropriação dos recursos audiovisuais pelos povos indígenas e a produção das suas narrativas, que podem não coincidir com o cinema tal qual a gente concebe, mas pode se expressar em outras formas, outros públicos, outros temas, outras perspectivas, outro timing, assim por diante. Portanto, a expressão pode decepcionar inadvertidos, ou instigar aqueles curiosos de outras formas de vida.

Quais foram os maiores e mais significativos passos da luta pela expressão indígena no cinema do Brasil? Que voz os indígenas hoje ocupam?

A produção indígena de cinema começa por curtas e médias produzidos nas oficinas de formação do Vídeo nas Aldeias. Desde o início, estes filmes foram recebidos com surpresa e interesse pelos festivais nacionais, sendo premiados em vários deles. Era visível nestes trabalhos a emergência de um novo olhar sobre a realidade indígena, com uma intimidade jamais vista.As expressões indígenas ecoam nos vários campos das artes ultimamente e há um interesse progressivo de uma certa geração pela perspectiva dos indígenas diante da nossa crise civilizatória e catástrofe ambiental anunciada.

O quanto de antropologia e de política cabe na essência desse cinema das aldeias e dos indígenas que vivem ao largo de seus locais de origem e o quanto de fábula há nessas expressões?

A maioria dos realizadores ou vivem nas suas comunidades ou se relacionam de maneira muito próxima com elas. E os processos de produção cinematográfica nutrem-se muito mais da sinergia coletiva do que do império do “autor”. A autoetnografia produzida por eles nos transporta para dentro daquele universo, como comentou o antropólogo Levi Strauss sobre o filme “O Amendoim da Cotia”, do povo Panará. Fábula para uns, mitos para outros, fazem parte do real, num processo de reconstrução identitária. Grande parte das produções retratam o seu quotidiano e as suas celebrações. Vale lembrar que a afirmação da identidade é o ato político essencial de toda minoria étnica.

O que os seus documentários “Martírio” e “Corumbiara”, hoje cultos, falam acerca da exclusão? E da inclusão?

A história do massacre de Corumbiara não existiria se não tivesse sido contada. Foi invisibilizada na raiz por um pequeno conluio local de malfeitores. E, por isso mesmo, ela é icónica e emociona qualquer nativo do planeta, porque todos eles viveram este momento subtraído da história de uma forma ou de outra. “Martírio” é o genocídio contemporâneo que não queremos ver. Faltava recontar este ininterrupto processo de expropriação dos Guarani Kaiowa dos seus territórios da perspectiva dos vencidos, que continuam não se dando por vencidos. Tudo isto fala da exclusão da perspectiva daquele que resiste. A inclusão? É fazer o público despertar para a história do relacionamento do estado brasileiro com os índios, o lado obscuro e perverso da história, e entender que o momento atual é a continuação de um processo colonial bárbaro.

Quais serão seus novos projetos?

Estou mergulhado na montagem da minha próxima longa, “Adeus Capitão”, a saga do grande líder Krohokrenhum, do povo Gavião no sul do Pará, narrada por ele mesmo. Das guerras do “índio bravo no mato”, da hecatombe do contato à reconstrução de um mundo Gavião possível. Mas a tarefa que me desafia mais é digitalizar o imenso arquivo de filmagens produzidas nestes últimos 35 anos para a sua preservação e devolução aos povos retratados.

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